Prazeres do diabo

Comprovado: sexo é mesmo maligno

Considero o título desse artigo sensacionalista. Mas é uma provocação, porque nos dias de hoje são poucos os que acreditariam (ao menos no ocidente) que sexo ou outro prazer qualquer, seria diabólico, incitado por uma entidade maligna e que levaria a pessoa, ou sua alma, para o inferno após a morte. A maioria das pessoas daria risada de alguém que afirmasse isso seriamente. Vivemos no era de esclarecimento científico e liberdade individual, valoriza-se sobremaneira viver uma vida plena, sem tabus, sem medo de buscar as mais loucas fantasias para fazer os dias valerem a pena e fugir do marasmo. Não devemos nada a ninguém e a vida é curta, carpe diem, carpe diem! Nada é proibido. As religiões existem e existiram apenas para controlar as massas ignorantes através do medo e da coerção. Ok, concordo com tudo isso…

                Muitos vão entrar para ler esse artigo com a intenção de se certificar “será que ele falou essa bobagem de diabo?”.  Aquela coisa gostosa de poder rir de alguém tão simplório, capaz de acreditar em pecado, em ofender a Deus e que deixa de dar “umazinhas” por aí por medo de punição divina…

                A pergunta é: será que existe algo por trás disso ou é uma besteirada sem tamanho como parece ser? Se você persistiu até agora nessa bobeira vamos ver se consigo te fazer pensar que algo de culto e inteligente pode sair daí, e que faz sentido. As historinhas religiosas podem não ser tão imbecis quanto você pensa…

                Nos Vedas, texto sagrado da Índia, existe uma contradição. É afirmado ao longo do livro que existiria uma paraíso e que as pessoas boas iriam para lá, etc. e tal,  assim como os cristãos acreditam. Lugar parecido com aqui na Terra, só que perfeito. Só teríamos prazeres e nenhuma dor.  Porém, lendo coisas mais profundas sobre o hinduísmo, descobrimos que é afirmado que também não existe esse tal paraíso. E se você pergunta a pessoas mais eruditas no assunto, o porque da contradição, você entende que certas linguagens e histórias são usadas levando-se em conta o nível possível de compreensão da pessoa. Eles dão o seguinte exemplo: a mãe coloca primeiro mel na boca de seu bebê para depois introduzir a pimenta – preparar terreno. O mel seria todas essas histórias sobre paraíso, pecado, bem-aventurança, ofender a Deus, ceder ao diabo e etc. A pimenta seria aquilo que vamos discutir agora, um significado mais intrincado que nem todos estão aptos a entender.

                Jesus usava parábolas cujos personagens eram pastores e pescadores, próprios para seu público na época, para se identificarem e entenderem bem a mensagem por detrás.

                Sempre achei ridículo a frase “ofender a Deus” e “pecado”. Como um Deus todo poderoso e acima de todas as vaidades poderia se ofender? A “ira” de Deus, outro absurdo… Ele não controla as próprias emoções? Mas se você simplesmente substitui a palavra Deus por “felicidade” e a palavra “pecado” simplesmente como algo que não funciona para a sua felicidade maior, a coisa começa a fazer um certo sentido. Muda tudo, na verdade.

                Nós, hoje em dia, já podemos entender o significado muito mais inteligente e abrangente dessas coisas, que só grandes iniciados conseguiam compreender na antiguidade.

Vamos mudar nossa compreensão das palavras usadas nesses assuntos, tentando suspender o ranço que já carregam. Vamos começar com “pecado”, palavra que virou motivo de chacota entre as pessoas mais cultas. A palavra “pecado” (do original grego “hamartia”) significa ERRAR O ALVO, falha em atingir a marca…

                Esse significado vai ser importantíssimo para nosso entendimento aqui: errar o alvo.

                A outra que é importantíssima entender é: Satã, Satanás, nosso tão não querido Diabo.

                A palavra Satã tem origem simplesmente no deus romano Saturno, nome equivalente ao deus grego Kronos, de onde se origina a palavra cronômetro por exemplo, tudo aquilo que usamos para medir tempo. Kronos se origina da palavra “ker” que quer dizer “cortar”.

                Saturno/Kronos era tido como o deus que devorava seus filhos. Os quadros sobre ele são sempre violentos e ele geralmente traz em suas mãos uma foice que virou o símbolo da morte, o ceifador. Ele corta…

                Esse significado “cortar”, “fatiar”,  e toda a alegoria de Cronus, tem a ver com o tempo. Cortar a existência em momentos que se sucedem e principalmente ter um antes e um depois. O foice de Saturno dividiu a existência em antes e depois.  Satã, Saturno e Cronos simbolizam o tempo, o fim do Agora, a distância de Deus.

                 Diabo, o grande adversário de Deus, quer dizer apenas tempo vs. agora. Deus seria um estado pontual, o eterno Agora. Satã o estado de divisão entre antes e depois, sem a capacidade de estar aqui e agora.

                Esse é o significado prático e verdadeiro de toda essa historinha Deus vs.Diabo: Agora vs. tempo.

                Não vamos nos estender demais em falar sobre o complexo assunto do tempo, mas só na parte que nos interessa em explicar porque um prazer como o sexo pode ser considerado do Diabo, ou como eu gosto de chamar, um prazer escorregadio (sem duplo sentido sexual aqui).

                O problema central com nossos habituais prazeres é justamente o tempo. Eles ocorrem linearmente, na flecha do tempo, passando por nós e nunca permanecendo. Os prazeres no tempo nos oferecem um desafio: como agarrá-los, permanecer neles…

                A sensação pode ser maravilhosa, mas ela vai passando por nós como um trem bala, ficamos tentando segurar, sorver, nos perpetuar naquele momento, mas ele só existe em fluxo, ele vai passando, sempre indo…

                O ato sexual e a delícia de tomar um sorvete apresentam o mesmo problema. Sua mente não consegue estar exatamente onde eles estão ocorrendo, a passagem é sentida, mas é vertiginosa… Você quer mais um pedaço porque comer aquele brownie maravilhoso é rápido demais. Quando você vê, já era. Quantos pedaços você pode ter… ?

                Aonde exatamente está o sabor…? Ele está passando. Concentre-se mais, observe… Passou! Morde outro pedaço…

                Apesar de vivermos uma era de deleites por todo o lado, existe muito pouca satisfação. Não existe o proibido. Você pode transar com quantas pessoas quiser, comer quantos doces maravilhosos imaginar, conquistar as vitórias mais incríveis que impressionam todos os seus amigos… Não adianta. Esses prazeres são de Saturno/Cronos, estão inseridos no tempo… Vertiginosos… Viram passado o tempo todo! Viram passado assim que começam.  É só por isso que são considerados prazeres diabólicos, porque jamais você vai conseguir apreendê-los, tê-los pra si. Quanto mais você aperta pra tentar segurar, mais eles escorregam. Fica sempre uma insatisfação, um pós festa amargo… Vazio!

                Poderíamos pleitear ao universo um orgasmo de 40 horas, um corpo que não engordasse e não sentisse nojo mesmo após o centésimo pedaço de petit gateau. Poderíamos pedir para um momento maravilhoso entrar num loop por dias… Ainda sim, tudo isso estaria inserido no tempo do mesmo jeito, passaria por você e aquilo que passa não se compara aos prazeres pontuais, daquilo que fica num eterno instante. E isso existe?

                O paraíso não é um lugar. Lugares são coisas inseridas no espaço/tempo. Precisam de largura e comprimento. Deus e o paraíso são uma só coisa. E Deus é simplesmente a ausência de tempo, Cronos derrotado. E Deus é o nome que damos ao prazer pontual, a felicidade em si.

                “Be still and know that I am God”. Pare o tempo e saiba que “eu sou Deus”.

                O inferno é somente a perpétua auto-reflexão que se perdeu do Agora e vive no mundo de Saturno, dividido entre ante e depois e seus prazeres sempre de segunda categoria porque estão em fluxo… Aonde está o prazer desse sabor? Aonde? Está passando-passou…

                Ai está o cerne, o problema central de todos os prazeres que tanto amamos: passando-passou. Tente segurar o sabor do doce, tente… Aonde exatamente está você?

                Aonde está o sabor? Passando-passou…

                A mente ainda por cima está atribulada, o sabor no meio de tudo… Você tenta!

                Se analisarmos bem cada deleite nosso, veremos a cara feia dessa frustração com o tempo.

                Além de todos os problemas que geram em nossa vida: para ter sexo preciso estar bonita, preciso estar jovem, preciso ser novidade para meu parceiro, preciso estar magra, preciso comer menos, para conquistar mais mulheres preciso estar rico, sarado, dar presentes, ereção, arrojo, diâmetro, potência, poder…

                Deus é o agora, a ausência de desejo. O problema do desejo é sempre um problema de tirar você do agora. Eles brotam exponencialmente e nos fazem pensar o tempo todo como aquela pessoa deveria ser mais assim, como deveríamos estar mais ricos, num lugar mais bonito, mais jovens, etc. Todos problemas no tempo, que ele nos trás. E medo, muito medo do que está para acontecer, que é quase o estado habitual do ser humano.

                Nunca houve na história da humanidade tantas delícias para se curtir como hoje… As ofertas são irresistíveis e por todo lado. E nunca se tomou tanto anti-depressivo e tanto remédio para dormir. É que além de curtir o máximo que você pode, as fotos de todas as delícias que você poderia estar curtindo e não está, estão por todo lado e você sente ansiedade que é doença oficial do tempo futuro, ou depressão que é a doença oficial do tempo passado, todos os prazeres que você teve e que passaram. Prazeres que foram embora, prazeres que poderiam vir…

                Prazer escorregadios, em fluxo, de Cronos/Saturno/Satã, jamais nos trarão satisfação concreta e duradoura, apenas ansiedade. Sempre se quer mais e quando o mais vem não conseguimos guardá-lo e só continuamos a correr por mais… É a sina de quem só vive no passado e no futuro.

                O vazio no fim do fluxo do prazer… Aquela festa vai ser o máximo… já foi. Esse sorvete é uma delícia… acabou. Essa transa vai ser demais… gozei. Tudo nesse mundo é ejaculação precoce. E se estancamos o fluxo do prazer para tentar abrigá-lo em nós, ele some, é tipo uma maldição dele… Ele é passagem em si, não tem como contê-lo. É por isso que é tão comum dizermos que a antecipação é melhor que a coisa em si. É por isso que tiramos tantas fotos… Para encapsular aquele prazer e mantê-lo fora das garras do tempo. Mas…

                A morte é o preço do tempo. O ceifador tudo leva.

Éum tanto impossível tentar explicar exatamente em palavras essa frustração intrínseca do prazer temporal, mas qualquer um de nós sabe, ao menos intuitivamente, que está sempre lá e deseja que poderia existir algo mais verdadeiro e substancial, demorado, do que sensações de passagem vertiginosa por nós…

                Talvez não seja um conceito fácil de assimilar rapidamente do porque que todos os prazeres que conhecemos estão nesse fluxo do tempo e por isso são frustrantes. Mesmo que entendendo filosoficamente a coisa, que faz algum sentido, deve haver uma maturação da ideia e uma percepção mais sensível do que intelectual do fato. Essa frustração está incrustada em cada prazer porque nossa essência é fora do tempo, e essa é a verdadeira liberdade. Livre é aquele que está livre do tempo e seus cronológicos/saturninos/diabólicos prazeres.

                A palavra “libertino” é interessante. Para nós significa aquela pessoa livre que tem coragem de realizar todos os prazeres que tem vontade. Nada mais incorreto usar essa palavra para isso. Não existe liberdade alguma aí… No entanto ele é melhor que aquele que deseja e nada faz, porque desejar é tão “no tempo” quanto realizar. O problema está lá… tempo, ausência do presente.

                Uma senhorinha se deleitando comendo um pãozinho com geléia de laranja está cometendo um ato tão diabólico tanto quanto o homem que pagou três prostitutas para uma orgia particular. O problema é que são prazeres no tempo, só isso. E é isso que ofende à Deus (Agora) e é um pecado (errar o alvo) porque você nunca vai ter alegria em algo que passa, impossível de se agarrar, escorregadio, miragem…

                O monge/iogue não é um recalcado que renunciou aos prazeres da vida por ser meio bobo e não bon vivant que nem nós, ou porque quer fazer bonitinho para Deus, ou uma divindade qualquer que vai beneficiá-lo por bom comportamento no futuro. Não! O objetivo é justamente fugir do tempo (Satã) e alcançar Deus (Agora), e só. Nada mais que isso. Simplesmente existe um prazer infinitamente superior, que para quem nunca sentiu acha que é um mito, uma farsa…

                Mas o prazer não temporal existe. Toda busca mística tem a ver com isso e nada mais…

                Da próxima vez que você ouvir a bobagem que tal prazer é do diabo, você vai ouvir de uma forma diferente. É uma coisa muito mais científica e verificável do que você pensava e que realmente diz respeito à sua vida.

                Não significa que daqui a pouco eu não vá tomar um sorvete… Mas o sabor, por mais maravilhoso que seja, será: passando passou…

Ai está o cerne, o problema central de todos os prazeres que tanto amamos: passando-passou. Tente segurar o sabor do doce, tente… Aonde exatamente está você?

O sinal da cruz que os cristãos fazem pode ser feito com muito mais propriedade e consciência se pensarmos assim: quando colocamos a mão direita na testa (a mente), ao invés de dizermos “em nome do pai”, dizemos “que minha mente esteja no coração” (quando colocamos a mão nele na sequência). O coração é o relógio de sangue, ele está sempre no agora. Por isso fazer as coisas de coração significa fazer pelo instante e não por frutos que aquilo possa lhe render. Fazer algo por interesse futuro são coisas não feitas de coração, apenas pelo instante. Depois que se aterra a mente ao coração, pedimos que nosso lado esquerdo e direito sejam um só – fazendo o gesto com as mãos – sem dualidade, e terminamos com a mão na boca, símbolo do verbo, da ação, que será usada apenas para a sabedoria provinda desse sinal da cruz que acabamos de concluir.

Um dos significados mais belos da cruz que os cristãos usam está longe de passar pelo símbolo de morte, mas sim de inserção no agora. A madeira horizontal (o linear) atravessada  pela vertical que marca o Agora, pontual. O corpo de Jesus é o agora, o estado crístico, limpo do tempo.

Santo Brownie nosso de cada dia, por que és tão breve?

Apresento-lhes o Diabo!