Minha (aterrorizante)

 experiência com a Ayahuasca

 

Explosão involuntária do ego

Antes de contar como foi meu terrível encontro com “mãe” Ayahuasca – como gostam de chamar carinhosamente seus discípulos – gostaria de explicar como foi amadurecendo em mim a vontade insuportável de experimentá-la. Acredito ser fundamental entender isso, pois faz parte inseparável do ocorrido como um todo.

                Sempre fui avesso a qualquer tipo de entorpecente. Mesmo quando jovem – época em que a curiosidade por esse tipo de coisa está a mil – tinha atração zero por álcool, maconha, cocaína e etc. Praticante de ioga desde os 18 anos, eu via essa forma de “recreação” das drogas como uma fuga da realidade, uma imersão boba em alucinações e estados toscos de consciência que nada me trariam de proveitoso, de objetivo. Ainda que muitos relatassem um súbito fluxo de criatividade e alegria durante o estado alterado, minha desconfiança nunca baixou a guarda de que essas coisas eram o caminho oposto do desenvolvimento pessoal, eram uma regressão a estados ainda mais brutos e bestiais, como sempre presenciei nos bêbados noite afora…

                Minha procura foi sempre por algo mais real, mais fundamental, por uma lucidez ainda maior do que a do estado de vigília habitual. Portanto, perder meu tempo com formas ainda mais ilusórias – demências momentâneas causadas por avacalhações na química de meu cérebro – me parecia um insulto ao caminho que me propus seguir, minha vontade de progredir, de ser mais consciente. Por mais divertido que pudesse parecer essas “trips” alucinógenas,  eu de minha parte queria algo sólido e permanente, concreto.

                Minha percepção com relação a isso tudo começou a mudar quando comecei a ler os livros de determinados autores, expoentes do movimento psicodélico. Um livro, aliás, pode ser uma droga pesadíssima, pois é capaz de introduzir ideias novas e modos diferentes de ver as coisas que podem se instalar em nossos neurônios de forma definitiva.

                Esses escritores eram por demais inteligentes para serem desprezados por mim como meros junkies… Eram loucos que estavam falando coisas muito lógicas e interessantes.

                Alguns pontos que abordaram nesses livros – e em palestras espalhadas pela web – foram fundamentais para “fazer minha cabeça”, mudar minha opinião. Talvez em outro artigo me aprofunde mais em cada um desses pontos, mas por agora, para não fugir demais do objetivo de relatar minha extraordinária experiência, vou sucintamente explicá-los.

                A primeira pulga atrás de minha orelha foi posta por Graham Hancock, um escritor britânico que não deixa passar um ano sem que venha à América do Sul para tomar Ayahuasca. Além de seus contagiantes relatos de como a planta mudou sua vida para melhor, um ocorrido em uma de suas experiências o fez duvidar da alcunha de “alucinógeno”apregoada a ela. Enquanto estava sob seu efeito, Graham viu uma menina na floresta… Claramente não era “real”, pois movia-se de um jeito inumano, menos denso. Até aí nada demais, sua mente estava produzindo as tais alucinações, delírios de quem teve o cérebro entorpecido. Fácil de explicar. Mas ele resolveu pedir ao amigo – que também estava sob o efeito da planta – para olhar na direção onde ele via a menina. E ele também a viu, e a descreveu da mesma forma que ela aparecia para ele. Ou seja, uma alucinação a dois? Ou – o que seria formidável – estavam vendo uma outra dimensão? Ilusão é quando só nós vemos uma coisa. Mas quando é de consenso, como fica? O vírus do “e se…” me pegou já aí…

                E se, e se , e se… E se a Ayahuasca aumenta nossa percepção da realidade a nossa volta? Nos faz enxergar coisas reais e não meras fantasias que com nossa mente em estado normal não conseguimos enxergar?

                E se? Será, será, será?

                Não estava convencido, mas uma leve curiosidade ficou. Fui atrás de opiniões mais científicas da coisa. A gente sabe que as pessoas exageram em suas experiências para tudo ficar mais interessante e real. Muitas vezes mentem na cara dura. Então, o cético em mim apenas considerou tenuamente o relato de Graham. Mas era uma sementinha…

                Aí aconteceu de eu ouvir o respeitado anestesista Stuart Hameroff relatar que análises feitas de chapas do cérebro obtidas com FMRI (Functional magnetic resonance imaging) – de pacientes sob o efeito de substâncias psicodélicas, mostravam uma brutal redução da atividade cerebral, apesar desses pacientes relatarem um universo infinito de visões e vivências riquíssimas em sensações. Ora, isso é muito estranho. O cérebro deveria estar acendendo loucamente, como uma tempestade elétrica, mostrando que muitas áreas estavam sendo acionadas, produzindo essas visões e sensações. A conclusão de Stuart – e de muitos outros cientistas – é de que as visões não poderiam, portanto, vir dos neurônios, mas de algo externo ao cérebro.

                A loucura da conclusão é ainda maior:  nosso cérebro pode ser um limitador da realidade. As substâncias psicodélicas – ao menos algumas – tem a capacidade de nos “livrar” dessa caixa, dessa fresta ínfima pela qual olhamos o mundo. Seria como fazer um furo num aquário… Nossa consciência começa a se espalhar, expandir, e um universo real de coisas antes ignoradas passa a ser percebido. Nada a ver com alucinação, mas com ampliação. O contrário de iludir, pois mostra que antes é que estávamos iludidos, achando que a nossa volta só tinha aquilo… A substância cessa nossa identificação absoluta com os processos mentais internos para nos jogar em algo maior.

                E a percepção maravilhosa de que nossa consciência não vem do corpo físico e não está confinada a ele, mas existe sem ele, passa a ser uma verdade absoluta. Será?

                 O cientista Bernardo Kastrup, especializado em inteligência artificial, cita que aí está a explicação de qual é a graça do terrível “choking game”, jogo da asfixia, uma brincadeira entre jovens que pode levar à morte. Pressionando o pescoço fortemente por um certo tempo, a pessoa impede o sangue de fluir para o cérebro o que ocasiona algum tempo depois, assim como os psicodélicos, uma breve fuga da claustrofóbica mente. Uma sensação maravilhosa de auto-transcendência ocorre, mas que se não interrompida à tempo, é claro, mata a pessoa.

                Bernardo ainda cita veteranos do Vietnam que tiveram seus cérebros danificados e o quanto isso propiciou uma vida interna espiritual riquíssima. Certos danos físicos no cérebro – nem todos, é claro, – fazem cair as barreiras com o resto do universo. Nosso container é rompido…

                Portanto, resumidamente, a Ayahuasca poderia – assim concluí – causar uma paralisia momentânea de minha atividade cerebral, que faria com que minha consciência se expandisse, podendo se tornar inclusive não-local, abarcando o universo como um todo. Exatamente o que os iogues da Índia ensinavam a fazer com a meditação, exatamente a descrição do que é um Samadhi. A experiência psicodélica não era uma embriaguez… Era, pelo contrário,  um choque de realidade. Será?

                Ainda fiel à minha prática diária de meditação como ainda algo mais sólido e seguro para obter minha expansão de consciência, o último e decisivo argumento que mudou minha opinião e me fez finalmente querer experimentar veio do irreverente e inteligentíssimo Terence Mckenna.

                O “figura” repetia à exaustão o seguinte: para que ficar anos e anos meditando, fazendo milhares de exercícios para talvez um dia daqui 40 anos quem sabe conseguir um Samadhi, se você pode ter um agora mesmo, alguns minutos depois de tomar um chá de cogumelo ou um LSD, ou um DMT (princípio ativo da Ayahuasca)? Por que não? Vai ficar aí falando teoricamente de uma coisa que você nunca experimentou de fato?

                Ele ainda dizia: Quantas vezes na vida você pode dizer que ficou embasbacado com uma coisa, realmente, infinitamente maravilhado, endoidecido de emoção, sem palavras, sem que isso seja apenas hiperbolismo, exagero poético…? Você já teve uma experiência assim? De fazer seu queixo cair e fazer você chorar, gritar, nunca mais ser o mesmo? Dizia que teve várias com suas trips. Via seres incríveis que quando falavam despejavam realidades indescritíveis pela boca. Via seres sentientes que conversavam com ele… Tudo fascinante e convincente demais para eu ignorar…

                Ele fez eu me sentir um trouxa de não tentar. Ele chamava os psicodélicos de o microscópio – ou a luneta – mais poderosa para observar o universo. Estava ali, à mão…

                Eu estava perdendo uma oportunidade de ver mais do universo agora, nesse instante.

                Os entusiastas da coisa criaram até um termo mais poético e espiritual para denominar essas drogas especiais, para diferenciar dos que queriam essas coisas apenas para ficarem “doidões” e se divertirem. Chamam de enteógenos, “Deus dentro”,  drogas psicoativas que causam uma verdadeira experiência de ampliação de consciência.

                Ainda devo citar a surpresa que tive ao ler os livros de Timothy Leary, o excêntrico psicólogo americano, professor de Harvard, proponente dos benefícios terapêuticos e espirituais do LSD. Digo surpresa porque achava o cara meio folclórico, um fanfarrão marqueteiro, cheio de bravatas egocêntricas, que organizava orgias regadas a muita droga com a desculpa de que eram para o progresso humano. Mas achei genial o que ele explica em seus livros sobre os níveis de consciência, que ele chamava de circuitos, desde o mais simples, só com impulsos de sobrevivência, ao oitavo e mais elevado, onde nos tornamos não-locais e não lineares…

                Bom, a coisa estava fervendo em minha cabeça. Eu li demais, ouvi demais… Eu tinha que tomar Ayahuasca. Eu falei isso para minha mulher setecentas milhões de vezes: preciso tomar Ayahuasca. Enchi até a pobre de minha mãe com esse assunto…: mãe, preciso tomar Ayahuasca.

Terence Mckenna – o provocador que me fez sentir que era estúpido não experimentar ao menos um psicodélico. O título de seu livro “Alucinações Verdadeiras” já diz muito sobre sua filosofia de vida. Vale a pena ouvir os inúmeros vídeos de palestras suas espalhados pelo YouTube. Era um cara inteligentíssimo.

Acabou rolando uma primeira vez, na companhia de minha mãe. Mas foi a coisa mais decepcionante do mundo. Eu e ela não sentimos absolutamente nada. Tomamos aquela bebida horrivelmente amarga – segundo eles o preço leve a se pagar para depois ter horas de êxtase – e ficamos sentados em cadeiras de plástico, apertados com um monte de gente por mais de cinco horas e nada aconteceu. Eu ficava pedindo para a moça que servia a Ayahuasca que queria beber mais… Ela atendeu uma vez, mas depois não mais. Pedia só para que eu fechasse os olhos e me concentrasse nos meus processos internos. Que decepção! Esperar e esperar e nada vir. Assim que acabou fui bravo perguntar a ela  o porque de nada ter acontecido. Ela me explicou que algumas vezes não acontece nada, talvez por eu não ter me concentrado o suficiente, e isso me irritou ainda mais… A culpa era minha e não daquela coisa marrom que bebi que devia estar fraca demais. Se nem minha mãe sentiu! E fiquei lá só me lamentando a ela dizendo que li que as pessoas voam, veem Shiva, cobras, dragões, que viram onças, reencontram os mortos e etc., e eu ali quase seis horas sentado só olhando pro teto… E a culpa era minha? Será que tudo era só mais um mito? Todo mundo inventa coisas fantásticas para parecer interessante?

                Foi mais ou menos um ano depois disso que uma outra oportunidade apareceu. E veio  do nada. Eu já não ia mais atrás da Ayahuasca como tinha feito da outra vez, pesquisando todos os lugares e pessoas que entendiam do assunto até escolher onde tomar. Não. A decepção me fez meio que desistir da coisa.

                Mas enquanto passeávamos no sítio de minha mulher, mais precisamente pela ecovila onde ele fica, resolvemos entrar num atalho que facilitava a subida até a casa, cortando boa parte no caminho. E de longe escutamos um grupo de pessoas que também estavam nesse atalho falando sobre o que? Sobre a bendita Ayahuasca. Ouvimos que estavam planejando ir numa cerimônia que aconteceria em breve. No meio dessas pessoas estava Rosana, uma amiga querida nossa que também tinha casa ali. E ela nos contou que já tinha tomado o chá nesse lugar e adorado a experiência, e ia marcar para ir de novo agora. Minha mulher foi logo contando a ela de como eu falava da tal planta dos índios da Amazônia o tempo todo, e como amava o assunto…

                Bom, aí a coisa fluiu. Senti que era pra ser… Veio ao meu encontro muito fácil e de uma pessoa de confiança. Mãe Ayahuasca estava me chamando? Quem sabe agora vai? Nos inscrevemos para a cerimônia que aconteceria em um mês. Fiquei muito animado e minha esposa que tomou a iniciativa de tudo estava feliz de poder me proporcionar uma nova tentativa. Tem que tentar…

 Aí o verdadeiro pesadelo chegou. As portas do inferno se abriram para mim. Os padrões geométricos que antes pareciam divertidos começaram a me engolir. Eu era sugado e despedaçado por eles. A fogueira e os índios à minha frente pareciam ainda mais agigantados, mas sem consistência, como miragens, irreais. Eu sentia que estava morrendo…

A terrível (e maravilhosa) experiência 

O encontro com a morte 

A cerimônia foi num lugar bonito, um sítio com um salão bem espaçoso, cheio de Dream Catchers pendurados por todo lado (minha sobrinha tinha desenhado um para mim três dias antes, achei a coincidência significativa).  Levamos mantas, água  e deitamos encostados na parede, gente por todo lado, sem nenhum espaço. Dois índios estavam ao redor de uma fogueira. Muitas imagens hindus decoravam a sala, me marcaram um Shiva na parede e um lindo pano de Ganesh que pendia do teto. Não pude ficar ao lado de minha mulher, pois disseram que não era bom, para um não interferir na experiência do outro.

                Uma pequena palestra no começo e depois já se formaram filas para receber o rapé, que antecederia o chá. Uma fila era um preparado mais forte e outro mais fraco. Eu e minha mulher fomos na fila do fraco, para quem nunca havia experimentado. Ele colocou um canudo no meu nariz e assoprou. Achei aquilo horroroso. Pareceu que foi parar direto no meu cérebro. Meus olhos ficaram lacrimejando sem parar como se tivessem tacado pimenta. Aquilo já me deixou assustado. Fui meio que cambaleando sentar no meu lugar, totalmente zonzo. E esse era o fraco!

                Na hora que os índios vieram me abençoar com fumaça, não consegui levantar. Todos levantavam para receber a benção, eu não consegui e eles fizeram comigo sentado mesmo.

                A coisa começou assim. Eu estava grogue. Passados uns vinte minutos eu já estava melhor, animado para tomar a Ayahuasca, a estrela da noite. Nesses vinte minutos eu achei, de verdade, que não conseguiria mais levantar e ir lá tomar, tamanho o baque que levei. Mas melhorei e até meditei, sentindo uma paz profunda.

                O chefe da cerimônia abençoou meu copo e me deu a Ayahuasca para tomar. Senti um líquido muito mais espesso e pegajoso do que eu havia tomado na primeira vez há um ano, como um xarope, mas igualmente horroroso no sabor amargo.

                Passados quarenta minutos o moço que me serviu o chá foi de um em um perguntar se “a força tinha chegado”. Eles chamavam o efeito de “a força”. Eu respondi que achava que sim…Mas ele havia dito que quando ela vinha, não havia dúvida alguma… Eu estava procurando algo dentro de mim, mas nada de muito relevante acontecia. As músicas que tocavam eram bonitas, o clima da coisa era legal, mas…  Então me voltou o medo da minha primeira vez, onde nada tinha acontecido. Será que ia ficar nessa coisa sonsa de novo? Pelo amor de Deus, deixa eu ao menos ver umas alucinaçõeszinhas básicas, uma sereia, um corvo falante, sei lá…

                Tomei uma segunda vez… Quase uma hora passou e nada. Ouvia muita gente vomitando e se retorcendo. Eu, nem isso… Cadê a tal da força? Eu devo ser imune ao chá.

                Passadas três longas horas de cerimônia, foi oferecido uma nova dose de Ayahuasca, só para quem não tinha sentido ainda a força bater. Lembro que só eu e mais duas pessoas se levantaram para tomar. O resto não parecia nem estar mais presente ali para escutar, totalmente imersos em suas viagens psicodélicas.

                Pelo amor de Deus, me dá esse chá… Não quero ficar de fora disso de novo. Tomei meu terceiro copo e fui sentar já meio derrotado, sem esperança…

                Tadinho, não sabia de nada…

                Como disse o principal aparador da noite, não vai existir dúvida que a “força” desceu em você. E ele tinha total razão.

                Só não digo que a coisa veio violenta logo de cara porque comparado com que aconteceu depois, esse começo da “força” foi só coceguinha… Mas foi também impressionante.

                De repente comecei a ver milhares de formas geométricas abstratas e extremamente coloridas. O interessante é que pareciam brotar diretamente do som vindo dos índios, que ininterruptamente cantavam em volta da fogueira. A cada sílaba entoada, mais padrões geométricos se materializavam na sala, como se eles fossem o próprio som, nascendo e morrendo com a vibração. E o mais louco é que os índios pareciam agora gigantescos e eu era o chão onde eles pisavam, com aquela marcação ritmada e forte que os índios costumam fazer com os pés. Era em cima de mim que eles marcavam o tempo.

                Aí comecei a sentir um enjôo muito forte. Procurei com dificuldade o saquinho que todos tínhamos do lado para essa hora. Segurei-o tremulamente… E finalmente o tal vômito veio. Era um hiper-mega vômito, nada nem perto das vomitadas que já dei pela vida. Era um vômito titânico, colossal…  Eu sentia que urrava com todas as forças do mundo enquanto o vômito saía. Um grito desesperado de filme de terror. Um urro de bicho, de fera… O vômito era preto, coisas negras esquisitíssimas saiam da minha boca com um jato violento e absurdo, num volume que seria impossível estar contido dentro de mim. E esse jato parecia não ter fim.

                Quando parou, comecei a olhar a minha volta envergonhado porque achei que todos deviam estar assustados com o som que eu tinha produzido. Na minha cabeça tinha sido um espetáculo de horror e gritos histéricos, um pavoroso escândalo Mas ninguém tinha sequer me notado. Todos estavam lá absortos em seus próprios delírios. Quanto do que eu presenciava que era real ou imaginário, eu não tinha como saber, porque estava tudo misturado. Eu tinha realmente vomitado, o saquinho cheio estava ali, mas claro que não na proporção que via e ouvia. Parecia que a Ayahuasca potencializava tudo, tornava o real incomensuravelmente mais intenso.

                Dei mais 3 super vomitadas assim… Foi na quarta e última que percebi que chamei sim a atenção de uma amparadora, que sem tomar o chá, estava ali lúcida para nos ajudar caso precisássemos. Percebi que ela estava me observando com certa preocupação.

                Aí o verdadeiro pesadelo chegou. As portas do inferno se abriram para mim. Os padrões geométricos que antes pareciam divertidos começaram a me engolir. Eu era sugado e despedaçado por eles. A fogueira e os índios à minha frente pareciam ainda mais agigantados, mas sem consistência, como miragens, irreais. Eu sentia que estava morrendo.

                Fiquei de joelhos e comecei a gritar “meu Deus, meu Deus, o que é isso, o que é isso”. Percebi que agora era sim um escândalo real que eu estava dando, pois a amparadora veio correndo assustada me abraçar, e ajoelhou comigo ali, dizendo no meu ouvido: se entrega, deixa vir, não resiste… E eu horrorizado, querendo que aquilo parasse.

                Aí fiz a coisa mais imbecil possível. Levantei e saí correndo como se assim pudesse fugir daquele caos que me desintegrava. Não sei como não me atravessei na fogueira porque ela estava na passagem e eu corria desnorteado. Passei pelos índios e eles pareciam monstros enormes que podiam me pisar como se eu fosse um inseto. Todos os amparadores do lugar entraram em pânico. Minha mulher contou que naquele momento a que estava me cuidando pediu para eles me seguirem. Tinha um rio na frente e meu estado estava perigoso.

                Senti de repente muitos braços me segurando lá fora, perguntando onde eu ia… Foram me segurar. Eu precisava mesmo que me segurassem. Enquanto eu corria desesperado eu olhava o chão e me dava vontade de me tacar nele para sentir algo sólido, pois tudo estava perdendo a consistência.

                Até o líder da cerimônia, o que havia dado a palestra inicial, veio me acudir. Ele gritava no meu ouvido: “se a força veio forte assim pra você é porque você pode aguentar, aproveita”. E eu respondia: “faz parar, pelo amor de Deus, faz parar…”. Ele respondia: “você tá com medo? Por que quer que pare? Veio pra você, é seu. Olha pra dentro, fecha os olhos, se concentra. Você tá com medo da sua própria força.”

                Quando eu fechava os olhos era tudo muito pior. É regra nas experiências psicodélicas fechar os olhos, pois só aí você pode ter a experiência. Mas para mim, se o real lá fora já estava caótico, por dentro a coisa ficava ainda mais insuportável. Era como se eu não tivesse mais nada onde me apegar e entrasse em queda livre rumo a algo sem fim.

                Me taquei no chão e os amparadores ficaram a minha volta. Eu continuava pedindo para fazer aquilo tudo parar. Cheguei a pedir para me fazerem dormir, me apagar… Me deram uma mexerica pra comer, pra ver se abrandava o efeito da coisa, mas o líder ainda pedia pra eu me deixar levar, pra ver o que a Ayahuasca queria me mostrar. Ele provocava: “você não aguenta?”. Eu não queria me deixar levar, queria manter a sanidade, parecia que se eu fechasse meus olhos eu ia me perder pra sempre, ia morrer. O mundo não fazia mais sentido. Tudo a minha volta tremia, mesmo de olhos abertos. Nada tinha solidez. Aí eu não sentia mais meu corpo nem o chão embaixo de mim. Tudo piorou quando eu senti que não tinha mais a língua que uso pra pensar, não tinha mais palavra alguma pra me segurar. Eu via tantas formas passarem que me dava uma náusea tremenda. Milhões de seres, alguns absurdos, outros mais possíveis. Não conseguia me fixar em nenhum e por isso a coisa era aterrorizante. Só passavam como um feixe de luz. Não cabia tudo aquilo em mim. Era como se tivessem soltado o oceano no meu copinho.

                Na verdade não tinha mais “eu” e meu “copinho”, mas só um fiapo de horror que me dava identidade, que era o medo justamente dessa inexistência.

                Aos poucos, com muito esforço, consegui pensar na minha cachorrinha poodle Jolie, na minha mulher e na minha mãe, trazer a imagem delas a tona. Eu forçava o pensamento nelas para lembrar de algo que realmente existia, e principalmente que eu existia, alguma referência que me dava solidez. “Eu tenho mãe, eu existo, eu tenho uma namorada, um cachorro, uma história”. Parece ridículo, mas era dificílimo me concentrar nisso, porque era muito mais fácil me deixar perder, sumir, desintegrar. O pensamento nelas era algo concreto que fazia minha atenção sair um pouco do fluxo de formas absurdas que jorrava sem parar através de  mim. Era como se eu fixasse meu olhar nos olhos de alguém para não ver o que se passava em volta. Mas tinha que fazer um esforço descomunal para não perdê-las da memória. Elas eram minhas bóias para não afundar nesse oceano de tudo ao mesmo tempo. É inútil tentar descrever as milhões de formas abstratas e orgânicas que vi passar. Algumas me olhavam, outras pareciam inertes, mas era sempre rápido demais para me concentrar em alguma.

Voltando à solidez

                Com os olhos abertos, de repente eu vi o chão de novo e isso me trouxe um enorme alívio. Mas ele ainda parecia não ter a capacidade de me sustentar, eu não sentia o corpo. Minha mão foi surgindo aos poucos, eu olhava para ela maravilhado por ter algo que parecia meu de novo, que eu tinha controle. Eu existia, tinha uma forma definida que parecia se manter no tempo…  Talvez fosse verdade aquela história que eu tinha um cachorro, uma namorada e uma mãe. Porque durante o delírio, isso parecia quase verdade, mas eu suspeitava que era invenção da minha cabeça para ter substância. Aos poucos a certeza veio chegando que elas realmente existiam.

                Com a percepção cada vez maior de que eu era uma individualidade, de repente eu pude visualizar uma outra individualidade perto de mim. Se há minutos atrás nada era perceptível por mais de um fragmento de segundo, agora uma forma parecia me olhar e se interessar por mim, conseguindo se manter corporeamente coerente no espaço/tempo. Se no começo parecia apenas uma bruma teimosa e etérea, a forma dessa individualidade foi ficando cada vez mais nítida e integrada e eu pude ver, para minha surpresa e alegria, que era o peludo cachorro que vivia ali naquele sítio, com a língua de fora e uma cara deliciosa de bonachão. Gente, para mim que amo cachorro apaixonadamente, ter como primeira visão em minha aterrissagem na Terra esse peludão foi por demais significativo e marcante. Por que ele estava ali me observando? Chamei ele para perto de mim e quando toquei seu pelo senti uma coisa inexplicável. Essa coisa tão trivial que temos do dia a dia do toque, me pareceu de repente tão visceral e sagrada quanto as que almejava em minha eterna busca por experiências mais transcendentes.

                Que amor senti por aquele cachorro, inexplicável. Jamais vou esquecer o momento em que sua forma ganhou nitidez e pude ver seus olhinhos me olhando. Eu estava de volta, eu existia, podia me perceber e outro podia me perceber. Foi ele quem me deu boas-vindas.

                Assim que tive forças para levantar fui ao banheiro. Não por necessidades fisiológicas, mas porque eu queria ver meu rosto no espelho. Achei incrível que ele estava ali, definido, imutável, persistente e teimoso. Não se diluía… Achei bonito. A boca no lugar específico, meus olhos, meu nariz super real. E eu podia mandar naquele corpo, eu mandava ele ir e ele ia. Algum controle de minha vida estava de volta.

                Apesar de todo horror que eu acabara de passar, quando finalmente voltei para o salão de onde escapara correndo, eu estava incrivelmente emocionado, feliz de estar vivo e sólido, de saber que minha mulher estava lá me esperando. Deitei ao lado dela com vontade de festejar a vida, cheio de gratidão.

                 Mas ela estava estranhíssima, brava, apavorada… Eu nem havia me dado conta, mas ela presenciou todo o escândalo que eu havia dado ali dentro… Meus gritos de “meu Deus, meu Deus…”, todo meu surto psicótico. Contou em detalhes que eu parecia querer rasgar minha própria pele com as mãos, aflito que estava em querer fazer aquilo parar. Contou do desespero dos amparadores que não sabiam o que fazer comigo. E contou que depois que corri para fora da sala, ela ficou horas sem notícias minhas. Como estava ainda sob o efeito da Ayahuasca, não conseguia levantar para ir saber sobre mim. Mas estava lúcida, ciente do que estava acontecendo. Disse que achou que eu tinha morrido. Eu não voltava para a sala e ela não parava de ver o corre corre dos amparadores, como baratas tontas de lá para cá, cochichando entre eles com caras aflitas. Ela até se viu tendo que ligar para minha mãe e contando que eu tinha morrido na cerimônia de Ayahuasca. E pior que nem havíamos contado a ninguém que estaríamos ali. Justamente para não dar preocupação.

                Estraguei totalmente a experiência dela. Por dias, de repente, do nada, ela começava a chorar,  repetindo o quão horrível havia sido tudo aquilo para ela. Não quis ver fotos do dia da cerimônia e até hoje tem calafrios quando passamos perto da estrada que leva até essa casa.

                Para vocês terem uma ideia do que passei ali, eu escrevi em minha agenda – onde sempre relato os fatos mais relevantes de meu dia – que aquele dia específico havia sido sem sombra de dúvida o dia que mais sofri em toda minha vida. Nada chega perto do inferno que passei. Nada… Mas o mais surpreendente é o que eu disse naquele dia depois de tudo e que continuo afirmando ainda hoje: eu jamais deixaria de ter tido essa experiência se pudesse voltar no passado. JAMAIS!

                Na minha percepção eu passei pela morte de meu ego, de meu “eu”. Minha consciência se expandiu e as coisinhas pequenas que o ego se apega para existir se diluíram como grãos de areia num oceano.

                Lendo mais sobre onde os psicodélicos atuam no cérebro, descobri que a região chamada de Default Mode é a mais afetada. É justamente nela que utilizamos nossa metalinguagem, ou seja, onde usamos a língua para refletir sobre nós mesmos, a prisão da perpétua auto-análise. Sem mais ter esse claustro da auto-reflexão, o existir em-si-mesmado, a consciência em mim pôde escapar. Mas com a droga, a coisa vem como uma avalanche e não pouco a pouco como na meditação. Meu ego se desesperou, lutou bravamente para não morrer. Eu não estava pronto para ser nada e tudo ao mesmo tempo.

                Mas é justamente isso que todo iogue procura… Eu senti o tamanho vertiginoso de talvez uma minúscula parte do universo. E isso foi sim maravilhoso, jamais vou esquecer. Como sob essa perspectiva nossa vidinha aqui fica pequena! Que vastidão existe por aí que nem podemos começar a entender.

                Mas me marcou também a beleza da finitude, da prisão da forma, de existir desse jeito tão pequeno e limitado, onde posso ter emoções tão infinitas como o amor por outras criaturas também limitadas em seus ridículos sacos de ossos. No caminho inverso, do sem limites de volta ao limitado, me emocionei como nunca e dei valor a esse momento em que ainda era um mero humano, com uma história linda e banal, vivendo um momento único… A ida e a volta foram incríveis! Eu morri e voltei para contar… Eu estourei, mas enchi de ar de novo minha pequenez, para poder ser separado do todo mais um pouquinho.

                Eu existo, estou aqui relatando um ocorrido comigo, minha história. Mas sei que também sou um nada preenchido por tudo, que um dia terei capacidade de aguentar o tranco.

                Obrigado mãe Ayahuasca. O que você fez comigo não se faz com ninguém. Ou só com ninguém. É preciso morrer para o finito – ao menos momentaneamente – para alcançar o infinito.

                Não sei se tomaria o chá de novo. Tenho sim um certo trauma do que aconteceu. E ainda acredito que meu caminho é outro, que os enteógenos não são para mim. Mas essa experiência me foi dada de presente e com certeza faz parte da construção de um ser mais vasto e lúcido, menos ego-centrado. Sinto muita gratidão por tudo isso que vivi. Não sou a mesma pessoa que entrou naquela cerimônia naquele dia e ao mesmo tempo, maravilhosamente, ainda sou a mesma pessoa. Os átomos se juntaram de novo depois de uma infinita dispersão. Achei que tinha morrido ou nunca sequer existido. Se alguns têm uma experiência de quase-morte, eu tive uma de quase-morte do ego… Mas ele conseguiu voltar pra contar.

Lindo quadro do pintor Alex Grey que procura sempre retratar suas viagens com os psicodélicos. Após minha própria experiência, comecei a realmente entender e sentir o que ele tenta expressar. Alex está construindo uma capela em Nova Iorque onde as estrelas serão os enteógenos.  A arte, a cultura e as comunidades que surgem através deles, “Capela dos Espelhos Sagrados”

Foto feita durante a cerimônia logo após o rapé. Vocês podem reparar (eu sou o de boné à direita) que minha cara já não estava boa. Assustado! Prenúncio do que estava por vir…

Minha mulher é a loira, está a extrema esquerda da foto. A experiência para ela também foi terrível, mas não no começo. Suas visões estavam super agradáveis, só flores e coisas assim. Quando meu surto começou, ela não pôde continuar…

Os dois amparadores que mais me ajudaram durante meu surto. Ela tentava me acalmar quando eu estava ajoelhado gritando “meu Deus” e ele depois foi quem falou para eu enfrentar e ver o que a Ayahuasca queria mostrar.

Os índios cantaram e bateram os pés por horas a fio…

Art by Bruce Riley