Uma mulher linda, jovem, esperando o primeiro filho, com um marido lindo – carinhoso e rico – morando numa casa espetacular. E não há absolutamente nada de errado com eles. Nada. Então não tem filme, certo? Como desenvolver uma história sem algum tipo de desgraça? Não se preocupe, o ser humano consegue… Não há vida boa demais onde não caiba alguém insatisfeito, sentindo falta de algo…

Ao começar o filme, quase sempre quem assiste começa a elogiar a casa e a beleza do casal. Arranca suspiros aquela vida dos sonhos… Suspeitamos que algum deles vai descobrir que tem um câncer fatal ou que um assassino vai entrar e estragar tudo. Só que não… Essa vida perfeita é justamente a protagonista do filme, que pouco a pouco nos convence que pode ser uma coisa pavorosa e opressiva.

Existe uma atmosfera inexplicável de tédio nessa perfeição … Ennui, boredom…  A atriz Haley Bennett tem uma atuação excepcional, porque logo enxergamos em seus sorrisos uma “alegria forçada”. Feições do tipo “está tudo super bem, mas não está…”.

Há pequenas dissonâncias, sim. A primeira delas, que percebemos na vida da protagonista, que se chama Hunter, é sua sogra. Ela é daquelas mulheres que parecem super gentis, solícitas, até carinhosas, mas que volta e meia solta aquelas indiretas e agulhadas sutis. Como Hunter tinha uma vida simples antes do casamento, vinha de uma classe bem mais baixa, ela tem que aguentar a toda hora ouvir da sogra: “Que sorte que você encontrou meu filho”.

O que a sogra não está suportando é que Hunter não tem a euforia que devia ter. Por que a nora não está com uma cara melhor se seu filho lindo e maravilhoso dá tudo para ela? Ela quer ver alegria estampada, gratidão, pelo amor de Deus. “Fica com uma cara de quem comeu e não gostou… Não tem cabimento!”

Mas esse tipo de vazio existe. A tristeza sem motivo é complexa, pois não faz sentido. É quando a  melancolia que a pessoa sente não tem legitimidade para ninguém. Aquela pressão de “você é muito privilegiada”. Olhe o mundo ao seu redor… Você tem coragem de reclamar?”.

Ela não precisa trabalhar, ganhar a vida. Que delícia! (Será?). Ela só precisa inventar algo para passar o tempo enquanto o marido super ocupado está fora cuidando de sua carreira de sucesso. Em uma das cenas mais emblemáticas do filme, vemos ela colocando adesivos rosas num dos cômodos da casa. Parece uma tentativa de dar cor à sua vida. A metáfora virou até o poster de divulgação do filme.

Leva o marido até o cômodo para fazer surpresa. Ele se esforça para mostrar empolgação quando vê… Mas fica no ar aquela atmosfera de “que bobagem!”.

Na mesa de jantar, seus assuntos não tem graça. Uma pessoa sem problemas não tem histórias boas para contar. Ela vê que o marido mal ouve o que ela fala, não cativa. Está sempre com algum assunto mais importante para tratar. O papel dela é ser aquela loira gostosa e pacífica que será mãe de seus filhos. Já está tudo traçado e no lugar. Não há dúvidas ou defeitos. São definitivamente felizes.

Só que a sogra percebe os sorrisos flácidos, sem vigor, e isso a irrita. Numa vista inesperada no meio do dia, presenteia a nora com um livro de auto-ajuda que tem o título “A Talent for Joy”, ou seja “Um Talento para a Alegria”, uma clara indireta, como se dissesse “aprenda a ser feliz minha filha, para com essa cara de sonsa, morta-viva. Não incomode meu filho…”.

Pesquisei no Google para ver se o livro existia, mas não, foi criado apenas para o filme. Mas poderia ser qualquer um desses livros clichês do gênero. Inventaram até um texto de quarta capa que é até engraçado:

“É sempre igual. Você começa o dia com uma aura de pavor. “Onde foi que errei?”. A batalha já está perdida antes de ser lutada. O mesmo de sempre. O ciclo de duvidar de si mesma e a ruminação obsessiva. Andando pela rua, você amarguradamente observa os pedestres que são cabeça fresca e felizes. Eles fizeram as escolhas corretas. Eles têm tudo dominado. Se ao menos você pudesse voltar no tempo e fazer tudo diferente. Escolher uma outra carreira, outro marido, mudar para um lugar longe onde ninguém sabe seu nome. Esse pensamento te assombra o dia todo. Você não está onde você pertence. Você é um saco triste com precárias habilidades sociais que enganou os mais próximos induzindo-os a pensar que era uma pessoa que você não é. Se ao menos algo acontecesse. Algo miraculoso.”

   Mas ninguém jamais poderia imaginar o efeito que o livro causa na cabeça de Hunter. Uma frase em particular funciona como uma pequena chama que incendeia tudo:

“Todos os dias tente fazer algo inesperado. Empurre a si mesma a tentar coisas novas.”

Meu Deus…

Assim que fecha o livro ela fica ruminando o que poderia fazer de inesperado. E faz algo super útil e terrivelmente surpreendente. Engole uma bolinha de vidro que estava na mesa a sua frente… Por isso o nome do filme “Swallow”, engolir.

Pronto! Sua vida já tem objetivos e desafios. A cada dia ela procura algo pior para engolir… Engole uma tachinha que a machuca toda por dentro. E ela sempre evacua os objetos e os pega de volta na privada como um pequeno troféu de coragem e ousadia. Ninguém mais pode dizer que ela não é uma pessoa que conquista coisas na vida.

Mas alguns objetos não saem… Num ultrassom para acompanhar o desenvolvimento do bebê, marido, sogra e médico descobrem que existem alguns objetos estranhos lá dentro. Todos ficam horrorizados.

Cara a cara com o vazio

Cara a cara com o vazio

Contratam um homem para vigiar Hunter o tempo todo para impedir que ela engula mais coisas. E é justamente com esse homem que acontece uma das cenas mais significativas de todo o filme.

Ao notar seu sotaque, ela pergunta da onde ele é. Ele diz que é de Damasco, na Síria. “E por que você saiu de lá?, continua ela. A resposta que ele dá é o grande insight desse filme:

“Por causa da guerra! Se você estivesse na guerra não teria esse problema mental. Não há tempo para problemas mentais quando estão atirando em você!”

Faz todo o sentido. Não tem gente mais em depressão do que esses filhinhos de papai de hoje em dia. Quando não há um problema claro a se superar, como uma guerra, fome, doença e etc.a pessoa fica cara a cara com o vazio. Ela tem tempo para pensar demais e isso não é nada bom. Vai comprar bolsas, sapatos, mudar o cabelo, redecorar a casa, organizar festa… Tem que ficar em movimento porque se parar, pira…

Alguns gurus dizem que gostam de ensinar gente rica e bonita porque essas já sabem que essas coisas não trazem felicidade. Quem não tem fica indo atrás, imaginando erroneamente de que se tivesse seria feliz.

As pessoas ficam desesperadas para se aposentar e quando o fazem ficam desesperadas porque não tem o que fazer. Que espécie de bicho é o ser humano?

No final do filme acontece outra cena muito importante. Hunter foge de casa e diz por telefone que não quer mais ficar com o marido. Ele implora que ela volte gritando que a ama, a ama demais. Só que quando ele vê que ela não vai voltar mesmo, começa a ofendê-la e ameaça-la como um psicopata. Que amor é esse? Esses “eu te amo” que abundam por aí só existem quando se cumpre o papel que o outro quer. Nada tem de amor.

Nenhuma realização material ou de amor que nos venderam vai satisfazer os anseios de nossa alma.

O filme é bizarro e desconfortável. Dá uma repulsa assistir ela engolindo os objetos. Fez-me lembrar do livro “Náusea” de Jean-Paul Sarte. Nele o personagem principal sente uma náusea que provém do nojo que causa a decomposição traumática do divino na existência, sintomático da descoberta do absurdo, do desencanto que é a vida. Transcendência e providência foram inventadas pelo homem? Nos sonhos que nos venderam, com certeza. Não há transcendência ali, mas apenas decepção.

Simplificando, o nada persegue o homem, dizia Sarte. Ou seja, tudo que esperamos que vai finalmente nos preencher, se mostra vazio no final. Só era bom em expectativa e nas sombras ilusórias da mente. Por isso que dizem que preparar a festa é melhor que a festa em si.

Ao vê-la engolir aqueles objetos sentimos essa náusea, essa vontade de vomitar que vem de perceber que aquela vida de Cinderella era na verdade vazia.

Conseguir tudo o que queremos pode servir apenas para mostrar que na verdade não queríamos nada daquilo.

Você é um saco triste com precárias habilidades sociais que enganou os mais próximos induzindo-os a pensar que era uma pessoa que você não é. Se ao menos algo acontecesse. Algo miraculoso.”