O Coringa, estrelado pelo magnífico Joaquin Phoenix – que faturou o Oscar de melhor ator por essa atuação – poderia trazer muitos insights para nós, mas como a proposta dessa seção é passar algo rápido e certeiro, optei por dois, que talvez sejam os mais abrangentes e profundos.

O primeiro ponto que quero destacar é o mito grego de Sísifo, que senti presente no filme.

A mitologia diz que os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. Eles pensaram com alguma razão que não há punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança. Assim que ele chegava ao cume a rocha caía novamente e no dia seguinte ele começava tudo outra vez.

No filme vemos uma representação desse mito numa enorme escada que o pobre protagonista tem que subir e descer todos os dias, para ir trabalhar e voltar para casa. É a sua montanha. A rocha é o seu trabalho que não faz sentido algum. Um dia não acrescenta nada ao outro, não forma algo que promove um caminho, uma sucessão de etapas que está levando para algum lugar, mas que pelo contrário, apenas funciona como um mecanismo diabólico que o coloca de volta de onde saiu. A repetição sem sentido… Esforço enorme cuja única utilidade é colocar a pessoa de volta para recomeçar esse mesmo esforço, do zero.

Quem já não sentiu-se assim? Quem já não perguntou no fim de um dia cansativo “para que viver”? Segundo o escritor Albert Camus – que inclusive escreveu um ensaio sobre esse mito grego – só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental de filosofia.

O filme começa assim, mostrando toda a terrível rotina desse pobre homem, antes de torna-se o Coringa, um Sísifo moderno. Ele é o típico “looser” -a palavra mais temida de 5 a cada 5 seres humanos. Não é bom em nada do que faz. Um palhaço sem graça, que não faz rir. Mora num prédio decadente cheio de outros loosers como ele, e sua vida é uma sucessão de humilhações. Sentimos sua dor, inundamos-nos de piedade e quando ele vira o monstro que vira, um psicopata assassino, parece até que ele tem razão, dá até um alívio de vê-lo abandonar o coitado dentro de si e tornar-se uma potência.

Após a transição de um fraco à um homem perigoso, e por isso, relevante, assistimos a cena mais emblemática de todo o filme: ele dançando nos degraus da outrora terrível escada/montanha, seu instrumento de tortura, que agora é palco de uma comemoração, de uma dança ritualística que marca e sacramenta o alucinante alívio de largar o peso da mediocridade, o êxtase de abster-se definitivamente da obrigação de ser são. O claustro do homem correto que nunca é recompensado é exorcizado. Ele derrota o enfadonho cotidiano, joga a rocha na cara dos deuses e grita “foda-se” tudo. “Chega!, estou livre”.

Sua dança representa que – ao menos em sua cabeça – ele venceu a escada. Os dias não são mais iguais, ele não é mais igual a todos os iguais, os comuns. Ele conseguiu por a cabeça acima do oceano de milhões de Sísifos… Há agora propósito e dias surpreendentes!

Saindo agora momentaneamente do mito de Sísifo, o outro ponto a se destacar é a constante reclamação por todo o filme, do homem que ainda não virou o Coringa: de que ninguém o vê, que ele é invisível. Ou seja, ele é irrelevante, sem importância alguma para os outros.

Psicólogos dizem que muitas vezes o motivo que a faz uma pessoa escolher uma vida de crimes não é apenas por sobrevivência, para ter dinheiro para comer, mas para ganhar relevância. Um jovem maltrapilho nas ruas nunca é notado até a hora que tem uma arma na mão. Aí a relevância é imediata. De repente ele é um deus que tem o destino do outro em suas mãos.

A dança na escada é também de alguém que ganhou substância e cor, que se fez relevante e que agora não só é visto, mas temido. “Eu importo, eu existo”, “Agora vocês me vêm seus desgraçados”.

Com essas duas “desgraças” na vida de nosso querido Coringa – a vida sem sentido e a invisibilidade – podemos chegar aos dois insights que comentei no início do artigo.

Mas, primeiro, vamos dar dois insights tradicionais, que para esse site são anti-insights, ou falsos-insights.

Dois falsos insights

Dois falsos insights

Se esse fosse um site de auto-ajuda, de um coach tradicional, teríamos as seguintes conclusões. Esse homem deveria esforçar-se mais para encontrar seu ideal na vida, seu real propósito. Devia ler mais Tony Robbins, participar de suas palestras para vencer, para ir de “zero to hero”. Ele é 100% responsável por ser pobre e um palhaço sem graça. Com ajustes energéticos, através de Reiki, Barras de Access, afirmações de poder ou intensa ação estratégica, objetiva e inteligente, poderia tornar-se um gênio da comédia, atrair riqueza e a mulher(es) de seus sonhos. O sonho capitalista do homem que cria a si mesmo e manifesta uma vida abundante. Basta querer e fazer acontecer. Saia da procrastinação, pare de reclamar, dê um fim a auto-sabotagem e ao vitimismo…

Esse é o primeiro anti-insight. O segundo é esse:

A análise oposta à primeira seria: a sociedade é injusta. As pessoas são ruins, só valorizam os bonitos, ricos e vencedores. Para os derrotados só há o menosprezo, o ódio e o bullying. Mudemos o mundo! Votemos melhor. Vamos criar condições para que todos sejam felizes. O Coringa é uma vítima de uma sociedade doente.

Os dois insights recomedam mudanças, sinalizam que algo está errado. Uma pessoa de direita chegaria à primeira conclusão, uma pessoa de esquerda, à segunda. Uma de centro acharia que é um pouco de cada. Talvez uma pessoa mais prática e científica diria que é apenas uma coisa genética, uma mutação, “um pau que nasce torto”,  que nada e ninguém tem culpa, nem ele próprio, e não devemos perder tempo tentando entender um monstro assim.

Ainda que não seja o objetivo desse site menosprezar iniciativas de querer melhorar a prosperidade pessoal com ações inteligentes ou muito menos desvalorizar ações que visam melhorar o mundo como um todo, tornando as pessoas mais empáticas e alcançando uma distribuição mais justa de recursos, queremos ir mais fundo e trazer insights que não são tão comuns e que se alinham com uma visão que julgamos ser verdadeiramente espiritual.

Esses dois anti-insights já se proliferam em demasia. Todos tentam ser importantes  e todos brigam para impor sua visão política de como a sociedade deve ser. E ainda chamaríamos isso de insight? Não…

Vamos contrapor essas visões tradicionais a uma frase de um grande mestre indiano, Nisargadatta Maharaj, que diz assim:

“Leave greatness to others. Become so small that no one can see you. This conviction results from growing devotion to the supreme reality”

“Deixe a grandeza para os outros. Torne-se tão pequeno que ninguém poderá te ver. Essa convicção é resultado de uma crescente devoção à realidade suprema.”

Que diabos é isso? Que “sabedoria” imbecil é essa que recomenda ansiarmos pela pequenez, até que sejamos invisíveis? Não é justamente a desgraça do Coringa?

Foge ao escopo desse artigo discutir e entender mais profundamente essa frase (mas o resto do site inteiro busca isso) . Aqui ela surge mais como provocação, como efeito de contraste para podermos pensar.

Não é a falta de relevância ou de uma vida emocionante que enlouquece o Coringa, mas sim o desejo de ter essas coisas.

Desde pequenos somos educados assim. Os pais gostam de mostrar seus filhos como importantes. “Ele já toca Paganini com 2 anos de idade”, “ela é a primeira na escola”. O pai da outra criança ouve isso com tédio: “Ele não viu como meu filho desenha bem!”. Por todo lado vemos anúncios de como ser mais rico, mais jovem, mais especial. A indústria da auto-ajuda faz você entender que poderia ter bem mais conquistas e coisas. Dentro de nós um anseio louco por relevância nos obriga a numa conversa casual com amigos, introduzir histórias e fatos que garantam uma imagem de pessoa especial. Até espiritualizados tentam ser mais humildes uns que os outros, mais evoluidos.

  “Likes” no Instagram… popular na escola…querido na família..invejado pelos amigos e inimigos. É isso que compõe um ser feliz. Será?

Pessoas famosas continuam carentes. Parece que atenção é um monstro que quanto mais come mais faminto fica. Quem é a pessoa menos invisível do mundo? Cristiano Ronaldo? Selena Gomes? Quão visível é você? Tem que aumentar a sua visibilidade dizem os experts. Aí você conquistará o título de influencer… Você estará não só passivamente na mente dos outros, mas conduzindo. Aí sim…

Por que o mestre Nisargadatta promove a pequenez? Por que ele diz que quanto mais contato com a realidade suprema, menos vontade de ser importante temos? Porque na verdade, essa importância sempre será uma ilusão, um devaneio mental, uma bobagem a mais numa casa de fantasmas. Como diz Montaigne, por mais suntuoso e milionário que seja o trono de um rei, na verdade ele senta sempre sobre sua própria bunda. A pessoa entretêm um sentido de importância em sua irreal mente, julgando que na irreal mente dos outros seres, ele é apreciado. Que realização mais infantil! Que mundo de faz-de-conta que nada tem de real. O ser mais maduro percebe a irrelevância da relevância cada vez mais.

Nenhum outro site poderia fazer uma crítica a esse filme como foi feito aqui. E essa relevância anula a própria tese do artigo, tornando-o incoerente. O autor buscou a excepcionalidade usando como argumento que não devemos buscar a excepcionalidade. Ele condenou “ter objetivos” com o objetivo de ensinar a não ter objetivo.

Brincadeiras à parte, a pegadinha do universo é a seguinte: não ter desejos, não ter vontade alguma de ser diferente do que se é, mas sim uma total rendição ao que é o agora, traz a maior sensação de poder possível. Extinta qualquer forma de anseio ou questionamento, fica a felicidade em si. Ninguém nunca nos ensinou isso. Parece papo de preguiçoso.

Há um provérbio Zen que diz: antes da iluminação: comer, varrer, dormir… depois da iluminação: comer, varrer, dormir. A análise é o inferno. O mundo externo não importa para quem parou de ter desejos, de categorizar “isso sim”, “isso não”. Desejo é intrinsecamente o deslocamento no tempo. A ausência dele é a pura beatitude. Para as pessoas isso pode parecer uma vida sem graça, mas essa é a pegadinha do universo.

Todo treinamento espiritual verdadeiro que existe, serve para realizarmos que somos aquilo que procuramos. Que quando paramos de procurar, finalmente enxergamos que a riqueza estava o tempo todo já conosco.

Para os adeptos da verdadeira espiritualidade a frase correta é: “from hero to zero”. Não há alegria maior do que não querer ser alguém, mas apenas ser.

  Hoje temos milhões de idosos em casa, tristes, porque aprenderam que ser relevante é o que importa. Não veem sentido na vida se não for para serem admirados ou úteis. Estamos treinando para sermos amargurados. Novos insights são necessários.

Por isso tudo dito aqui não vou recomendar sair por aí matando como o Coringa. Porque essa sensação de poder vai ter um fim bem rápido. Sua dança é ilusória, momentânea. Seu poder derradeiramente é uma fraqueza.

 Dance a dança da irrelevância e da invisibilidade. Ela é muito mais poderosa que a do poder e de conquistar o apreço dos outros. Ela é a dança da liberdade, da iluminação.

“Deixe a grandeza para os outros. Torne-se tão pequeno que ninguém poderá te ver. Essa convicção é resultado de uma crescente devoção à realidade suprema.”

Nisargadatta Maharaj