A técnica das 3 camadas

Perdoando familiares e amigos

Vou falar de uma coisa que todo mundo sente, mas poucos são os que pararam para realmente refletir sobre o fenômeno. E é uma coisa seríssima, que estraga amizades, afasta famílias, ou mesmo quando não é tão radical, mantém uma aura de rancor sobre todos os nossos relacionamentos, um mal estar perpétuo. E vou explicar minha técnica das 3 camadas, que  me fez salvar esses relacionamentos e encarar melhor a socialização com pessoas difíceis, ou seja, todo mundo (eu incluído).

Quando entramos numa festinha entre amigos ou família, somos recebidos quase sempre com muita alegria, abraços e beijos.  Te chamam de sumido, falam que você fez falta, perguntam por onde anda. Uns mais queridos até dizem que estavam com muita saudade e perguntam como você está, seus pais, seu trabalho etc. A voz sempre em tom mais alto, parece celebrar a tua chegada com euforia.  Você sente a cordialidade da coisa e mimetiza todos esses mesmos gestos obrigatórios sociais com mestria. Todos se amam, tudo é lindo.

A primeira camada é assim. Todos falam aquilo que é politicamente correto dentro de uma amizade, comportam-se como pessoas distintas, super descoladas e gentis, cheias de calor pra te dar, despejando elogios cor de rosa. Afinal, são teus amigos, tua família. Mas a primeira camada é uma película extremamente fina e transparente. Evanescente e protegida somente por açúcar refinado (dissimulado), não demora quase nada pra você começar a enxergar através dela. E aí podemos infelizmente presenciar à nossa frente, sem poder fugir ou ignorar, pois brilha como uma radiação malévola, a pérfida e nauseabunda segunda camada.

Você ouve a primeira agulhadinha sarcástica da noite. A primeira camada foi perfurada sem dó e com toda a facilidade pela acidez de uma aparentemente “inocente” piadinha vinda da segunda camada de alguém. Claro que algumas piadinhas são só piadinhas engraçadas, mas me refiro àquelas onde claramente sentimos que o objetivo primordial, bem escondidinho lá no fundo, foi tentar de alguma forma te diminuir. Pra disfarçar, a primeira camada é reacionada logo em seguida e algo frugal é dito com premeditada leveza. Te oferecem um vinho, uma cerveja, elogiam teu sapato.

A segunda camada é a camada da sobrevivência. Precisamos a qualquer custo entender como ela funciona, o porquê de ela existir. É desse entendimento, lógico e inteligente, que virá nosso perdão, nossa compreensão.  Porque camada da sobrevivência?

Apesar de parecermos seres muito evoluídos e cheios de avanços intelectuais e tecnológicos, a nossa base permanece a mesma de nossos antepassados e os animais em geral. Nossas necessidades básicas ainda obviamente são: permanecer vivo, fugir da morte, afastar todo e qualquer perigo a nossa volta, perpetuar e espalhar nossos próprios genes. Eros e tanatos, o sexo e a morte em cada fibra de nosso ser. Mas, ninguém percebe claramente que essa coisa tão primal está por de trás de quase todas nossas atitudes, até nas mais aparentemente refinadas.  A diferença é que no ser humano isso pode aparecer de uma forma escamoteada, por detrás, com minúcias subjetivas incrivelmente sutis, parecendo muitas vezes que não estão ali, mas sempre estão. Seguindo essa linha de pensamento, minha definição de ser civilizado é todo aquele que sabe camuflar com sutilezas e artifícios infindáveis as mesmas necessidades selvagens de toda matéria viva do planeta. Nossas relações sociais, portanto, estão carregadas de subterfúgios para se conseguir o maná da salvação, a certeza de prevalecer.

Para alastrar sua própria genética e afastar os perigos, a pessoa age sempre visando estar segura, forte e com um largo território de vantagem sobre os outros. Como o tigre que marca o território com xixi, o ser humano faz isso muitas vezes através de simples conversas. Escondido dentro desses aparentemente banais diálogos, uma guerra velada e inconsciente é travada. As discussões muitas vezes são só uma batalha, um anseio infindável de derrotar, o teor delas sendo totalmente irrelevante. A envergadura intelectual, monetária ou seja lá o que for do panteão de vaidades humanas é que está sendo medida com o oponente. Como o pavão que abre sua cauda para comparar com a do outro e impressionar a fêmea, estamos sempre pondo nossas cartas na mesa e blefando muito para existir com autoridade e segurança.  Mas o que isso tem a ver com seus amigos, sua família?

Não é preciso tanta explicação assim. Todos nós sentimos essa urgência em sobressair sobre os demais porque sabemos que os mais fortes sobrevivem. Inconscientemente o medo está sempre presente de que alguém seja mais eficiente do que nós e nos coloque em perigo.  As mulheres comparam a capacidade de sedução sobre o sexo oposto, os homens tem sede de parecerem vitoriosos, atraindo a admiração de todos e tendo menos possibilidade de ser afetado por perigos em geral.  Alastrar suas ideias, sua verborragia, é como alastrar seus genes. Quer impregnar a todos com sua divina excelência, sua grandeza ímpar. Todos querem de uma forma ou de outra serem reis, nem que sejam reis da humildade, da espiritualidade, da bondade. O ego ataca de muitas formas sem que percebamos. Essa coisa carnívora e predadora, essa neurótica camada de sobrevivência acontece subconscientemente a maior parte do tempo. Quase nunca somos capazes de admitir que demos um coice em alguém para não deixa-lo subir na estima dos outros. A mente é mestra em encontrar desculpas, em justificar nossas mediocridades. São sempre os outros que tem inveja, nunca nós. Nossos ataques sempre têm porquês, nunca são ataques, só estamos comentando. Desesperadamente procuramos defeito em nossos amigos para que o perigo de ser pequeno não nos assole, não nos extermine. E a coisa mais negada por todos é: ver o outro sofrer nos dá uma diabólica infusão de paz, uma sensação boa de que “não sou só eu”.

Entendendo que isso tudo vem desse carimbo genético de sobrevivência ancestral, de reflexo natural de autoproteção, estruturado no DNA e sabendo que está também em nós, perdoar o outro fica quase que desnecessário. Porque perdoar se entendemos exatamente o mecanismo de tudo isso?  Sabendo que somos também vítimas desse amedrontado reflexo natural por prevalecer?

É duro constatar, mas família e amigos são os primeiros a não quererem o nosso sucesso. Lendo isso, muitos se revoltam, dizendo que isso é um absurdo, claro que torço para meu irmão, meu primo, meu tio, meu melhor amigo. Mentira. O instinto básico de sobrevivência das pessoas está sempre em alerta. As pessoas sempre perdoam seus defeitos, mas jamais suas qualidades. Identificando possível sucesso de alguém em algo, um ganho de território perigoso, as pessoas se colocam na defensiva, com medo. É preciso retalhar e a pessoa vasculha em sua cabeça e em sua volta algo que diminua o outro, que o recoloque no mesmo nível. A dança dos sarcasmos ácidos, das fofocas por detrás, ou mesmo o ignorar cronicamente a presença e a história do outro tem início. Sua turminha de amigos e familiares é onde você mais quer impressionar, mostrar que venceu, que vale muito. É o lugar onde mais comparações acontecem de todos os lados, mesmo que veladas. Irmãos querem ser mais amados pelos pais. Amigos querem ser o mais cool de todos os outros. Se você olhar dois cachorrinhos, a disputa entre os dois pela atenção e o amor do dono, um tentando afastar o outro de todo o jeito, já tem o quadro completo do que é o ser humano: estamos nesse nível… Só que infinitamente menos sinceros e com técnicas avançadíssimas de dissimulação.

Por isso que dizem: nunca conte seus problemas a ninguém… 70% não se importa e 30% está feliz que você os têm. E o que é pior? Esses 30% são seus amigos mais íntimos e sua família. Ridículo? Absurdo? No fundo a gente sabe que isso acontece mais do que gostaríamos de admitir. E dessa percepção vem nossos ressentimentos mais profundos contra todos…

E o mais lastimável de tudo, é que temos mais facilidade em colecionar rancores do que lembrar das coisas boas que nos fizeram, mesmo que sejam infinitamente maiores. Com o passar do tempo, o acúmulo de rancores vai deixando aquela relação pesada, rançosa. Qualquer amigo novo que acabamos de conhecer parece mais leve, mais legal, mais simpático. Começar do zero e ter uma relação não tão próxima (que já sabe tudo de nós) parece mais atraente.  Tratamos muito melhor aqueles que, ou queremos algo, uma vantagem, ou que ainda não temos uma série de eventos para se ressentir. Passa ser difícil elogiar aquele amigo antigo, curtir um post no facebook, a mão não vai, trava. Quanto mais anos conhecemos e mais íntimo somos, mais feridas existem, mais histórias mal resolvidas, mais sensações ruins são acionadas naturalmente só de pensar nessa pessoa. Mais ressentimentos do tipo – “ele nunca reconheceu meu valor, só se exibe”. Mas na primeira camada existe aquela falsidade de que nos amamos, elogios vazios, nunca muito profundos porque manter certa superioridade é essencial. Então ainda somos “amigos” .

Aí nos perguntamos as vezes, será que vale a pena continuar vendo essas pessoas? Aquela falsidade toda tão clara e exposta, mal, muito mal encoberta pela primeira camada? Ainda mais depois que você percebe que definitivamente não torcem por você, mas contra?

...de repente, sem que ninguém saiba da onde veio, um momento mágico acontece: ninguém mais está armado, interessado em defender sua posição, seu território, ninguém quer mais que saibam seu valor, ressentimentos sumiram da memória… A segunda camada sumiu… A conversa flui maravilhosamente bem. Cada um contribui com uma frase certa na hora certa, complementando a do outro, nunca indo contra, o dom do outro se multiplica ao nosso e nos sentimos um grupo de verdade, um só corpo alargado, pensamos melhor. Todos estão presentes no agora, se algo do passado surge, é uma história engraçada ou bonita, algo que confirma ainda mais a amizade, a jornada que fizemos juntos. Esse delicioso transe da terceira camada parece estar além do tempo e do espaço.

Finalmente chegamos ao que realmente interessa nesse texto, que salva tudo, a terceira camada.

Na terceira camada, e que considero a única realmente verdadeira, onde não existe o medo de nada, portanto nenhum instinto de sobrevivência necessário, as pessoas realmente se gostam, se curtem, se amam. As histórias do que fizeram juntos emocionam, dá saudade, as qualidades do outro acrescentam brilho a nossa vida, não nos ameaçam.  Utopia? Exagero? Não, é fácil perceber que é assim.

No fundo no fundo, como dizem, a gente se gosta. No fundo no fundo do fundo, está a terceira camada.

Mais uma vez, naquela festinha entre amigos ou família, de repente, sem que ninguém saiba da onde veio, um momento mágico acontece: ninguém mais está armado, interessado em defender sua posição, seu território, ninguém quer mais que saibam seu valor, ressentimentos sumiram da memória… A segunda camada sumiu… A conversa flui maravilhosamente bem. Cada um contribui com uma frase certa na hora certa, complementando a do outro, nunca indo contra, o dom do outro se multiplica ao nosso e nos sentimos um grupo de verdade, um só corpo alargado, pensamos melhor. Todos estão presentes no agora, se algo do passado surge, é uma história engraçada ou bonita, algo que confirma ainda mais a amizade, a jornada que fizemos juntos. Esse delicioso transe da terceira camada parece estar além do tempo e do espaço. Ele é interrompido quando alguém do grupo é atacado pela volta da segunda camada que faz todos despertarem e se armarem novamente. Sentimos no ar que a energia baixou.

Mesmo quando estamos sozinhos, ninguém por perto, perdidos em nossos pensamentos, de vez em quando a segunda camada desaparece. Muitas vezes é uma música que causa isso, que te eleva sem mais nem menos. De repente você não tem mais nada contra ninguém, pensa em todos com carinho, sente até um arrepio pelo corpo… Todo mundo já viveu isso. Dá vontade de ser assim o tempo todo, mas não tarda muito e a segunda camada volta entorpecendo, deixando tudo turvo de novo. Passamos o dia todo repetindo mentalmente situações que não gostamos, repetimos brigas, coisas que nos disseram há anos que ainda estão atravessadas. A camada do medo entende que sem ela estamos sem retaguarda, a mercê de todo o mal… Nossa couraça eternamente reaparece.

Quando a segunda camada está densa em demasia, nos impede de sentir o pulsar constante da terceira. Mas como num dia nublado, sabemos que o sol está por detrás das nuvens, sempre, apesar de não vermos. Mesmo no dia de maior fúria e agressividade de nossos amigos, se você prestar atenção, sentirá o calor da terceira camada chegando até você, menos forte que um dia de verão, mas está lá. Principalmente quando alguém está muito infeliz, ou seja, acuado, suspeitando de tudo e de todos, espere uma segunda camada extremamente ativa. Nessas horas, esqueça o teor das conversas e enxergue além, no que está subentendido: concentre-se no fato de que é tudo somente um pedido de amor feito de maneira atrapalhada, um desejo de estar seguro. Muitos te agridem justamente porque esperam mais de você, porque na terceira camada seu nome tem um grande peso, seja por uma admiração gigantesca, uma história rica juntos ou porque seu amor os engrandece.

Sua turma de amigos ainda se encontra, sua família ainda se reúne…  a terceira camada está sempre por detrás disso, por mais que a segunda grite desesperada.

Reaprendendo anatomia

Ás vezes só na morte de alguém, infelizmente, é que deixamos a terceira camada falar mais alto. Com a morte, nosso instinto de defesa contra aquela pessoa se esvai, não representa mais perigo ao nosso ego, e aí percebemos o quanto gostávamos dela. A terceira camada só coleta qualidades porque não precisa mais se proteger. A presença daquela pessoa fará muita falta, nessa hora tudo fica claro.

É óbvio que certas pessoas não nos tem em sua terceira camada. Algumas amizades cumpriram seu papel ao longo da vida e não precisam mais de encontros ou novas histórias. É natural que a vida nos separe de certas pessoas, quando mais nada temos em comum. Forçar proximidade pode ser um grande erro para aqueles que naturalmente deixaram de ser essenciais uns para os outros. É preciso também deixar ir… Não significa desamor.

Esse texto é sobre aquelas que ainda valem muito para nós, mas que de uma forma ou de outra, a segunda camada estragou e estraga diariamente. É uma técnica a ser usada quando nos deparamos com um grande amigo absoltamente hipnotizado pela segunda camada, te enchendo de insultos disfarçados. Lembrar porque fazem isso, porque isso acontece, nos traz paz, nos faz querer continuar a amizade. Esperar passar o dia ruim, a tempestade….  Tentar fazer aflorar a terceira camada no outro com elogios, com inteligência… Quando as retaliações começam de sua parte, a coisa não tem mais fim. É segunda camada contra segunda camada, aquilo que você não é contra aquilo que o outro não é… Quilos de inutilidades são despejadas, deixando nossa conta bancária de rancores riquíssima e nossas amizades cada vez mais pobres.

“Não tenho nada contra ninguém. Sei que as bajulações insinceras vieram de uma camada superficial de disfarce (primeira). Sei que todos os ataques vieram de uma camada essencial para a sobrevivência humana (segunda), que naturalmente ataca quando se sente ameaçada, através de fofocas, sarcasmo, agulhadas, infelicidades com o meu sucesso. E sei que tudo isso vale muito menos que o calor muito mais palpável e substancial da camada que realmente interessa (terceira).”

Pois bem: primeira camada, segunda camada e terceira camada. A socialmente correta, o instinto de sobrevivência, a apreciação sincera… Quem entende essa dinâmica universal lembra-se de todos com mais carinho, torna-se um mestre nas interações sociais, não perde ninguém que vale a pena.

E aí, deu vontade de rever aquele chato pra praticar a técnica?

Na terceira camada temos o amor tão grande e incondicional quanto o dos cachorros?