A meditação como entrave para a iluminação

O personagem espiritual

Como assim? Uma das práticas mais essenciais para nos dar a sonhada iluminação pode ser um empecilho para alcançá-la?

                Iluminação – vamos definir um dos aspectos dela apenas – seria a liberdade total do fardo dos pensamentos, do fluxo ininterrupto de encadeamentos de ideias compulsivas e autônomas, que ao contrário de que muita gente pensa, não estão sob nosso controle. Muito pouca gente entende que são esses pensamentos a razão de toda nossa infelicidade e insatisfação. Enamorados que estão em pensar o dia todo e considerar essa vozinha interna perpétua como aquilo que tem de mais íntimo, mais até que o corpo físico, elas chamam esse pensar parasita de “eu”, e toda a sorte de infortúnios resulta desse erro. Os pensamentos são o parasita perfeito, porque fazem você achar que são você mesmo.

                E a maravilhosa meditação vem justamente auxiliar quem já captou esse enorme erro da humanidade. Começamos a olhar para os pensamentos e dizer “não, vocês não sou eu”, vocês apenas ocorrem em mim, mas há algo de mais fundamental por trás que apenas os observa. Para descobrir esse que é seu verdadeiro “eu”, é que existe a prática da meditação. Você manda todas as coisas pararem, corpo e pensamentos, para ver o que sobra e aí descobre a si mesmo.

                Não vou discutir os benefícios óbvios da meditação aqui, já inclusive comprovados cientificamente. Ela é sim um passo importante no processo de escapar da mente, pois em si, é a arte de tentar te trazer para o agora, e quem pensa jamais está no agora, mas sim habitando em fantasmas, passado ou futuro, ou analisando algum fenômeno presente, mas onde o ato de analisar justamente impede o ato de vivenciar.

                A iluminação é o processo de acordar de um mundo que não existe, feito de elucubrações eternas. Porque então o melhor instrumento de alcançá-la pode ser justamente o que a impede?

                Para começar, vamos tentar entender como a partir da decisão em si sábia de começar uma prática de meditação, acontece algo que intensifica o mal que ela serve para sanar.

                A coisa começa quando você se inscreve naquele super curso que tem vários níveis: meditação básico, meditação nível 1, nível 2 e avançado. Uma ansiedade de já estar no avançado começa a germinar dentro de você. Um entusiasmo, mas também um certo incômodo de que não vai ser fácil galgar esses níveis, dá uma certa preguiça também. Mas se tem nível avançado de meditação e agora você está sabendo que existe, não dá pra ficar parada, tem que ir atrás, ter força de vontade e sair da zona de conforto. Mas você sente que antes parecia melhor, não tinha todo esse caminho a ser percorrido. Mas você perdeu a inocência de achar que estava bem. Quero ser avançada poxa!

                Você compra uma roupa especial para meditar no curso, uma meio cara, pra não fazer feio e parecer uma pobretona. Tem que parecer espiritualizada e chique. Roxo ou azul, cores boas. Será que era melhor uma bem barata para mostrar desapego de coisas materiais? As pessoas fecham os olhos para meditar, mas você aposta que uma o outra sempre abre para aproveitar o momento indefeso de todos e te analisar de cima a baixo. Afinal, você faz isso, por isso que sabe. Aí você compra um colar com símbolo do OM de pingente pra todo mundo saber que você está levando a sério a sua busca. Liga para as amigas para elas saberem que acabou a menina perdida psicologicamente, você vai disciplinar seus pensamentos.

                Você começa a meditar no primeiro dia de curso. Não pode se mexer diz o professor. Você faz uma força incrível para ficar imóvel e parecer que está super internalizada e em paz. Torce pelos minutos passarem rápido… Não posso deixar ninguém ver que está difícil, ou vão achar que não sou espiritualmente avançada, mas sim uma alma nova. Pelo amor de Deus, ele não vai terminar isso? Aí você ouve ele dizer que pode abrir os olhos e se mexer bem devagar… Aí sim a felicidade interna vem, que alívio… Tomara que não tenham percebido que você não estava calma droga nenhuma e só estava esperando aquele martírio acabar. Liga para sua amiga para contar como foi incrível o curso, que você sentiu uma paz imensa.

                Quando finalmente chega no nível “avançado”, você está insuportável. Separa as pessoas entre as que não sabem que não são o pensamento e as que sabem. Julga todo mundo e dá conselhos, afinal você agora é nível avançado de meditação. Dá uma felicidade boa por dentro ser assim, avançada…

                Você vira a mais sábia entre as amigas, a que medita. Você agora precisa se comportar de acordo. Não da mais pra dar piti… Vão dizer: poxa, que adiantou todos aqueles cursos se você fica nervosa como nós? Você tem pavor de ouvir isso. Elas elogiam sua extrema calma e isso te causa um misto de prazer e aflição… E agora?

                Uma hora, claro, você não aguenta manter o personagem e tem um ataque de fúria. As amigas ficam assustadas porque foram pegas de surpresa e você desesperada tenta explicar que mesmo os grandes mestres tinham piti, que estar nesse planeta dual é assim, impossível uma hora não perder a paciência e que… blá blá blá… O problema não é o piti, mas o medo de sair do personagem que na sua ilusão, era exatamente o que você queria que fosse na cabeça dos outros, seu público, que pensa em você uns três minutos ao todo por ano…

                E toda hora você está se repreendendo: eu não devia acreditar nesse pensamento, não sou eu, não sou eu… Quem em mim quer esse sorvete? Não sou eu, não sou eu… Eu estou gorda, mas isso é futilidade, sou um ser espiritual acima disso. Ser gorda incomoda aos pensamentos e não a mim que não sou eles… Então posso tomar o sorvete? Quem afinal quer essa porcaria sem valor nutricional algum? Um mestre iogue toma sorvete?

                Aí, de repente, todo esse mundinho que você se meteu parece ser uma camisa de força muito chata e apertada. Você lembra com saudade quando pensava a merda que quisesse e não tinha a personagem “mestra zen” a se defender…

Espiritualidade Nutella…

Usei a palavra meditação apenas para usar alguma coisa, mas o problema vem de toda forma de espiritualidade em geral, que pode se voltar contra a pessoa de forma terrível e virar em si o problema que tenta sanar. Talvez ao invés de “Meditação como entrave para a Iluminação”, o título desse artigo devesse ser “Espiritualidade como entrave para a Espiritualidade”. Mas só depois de tudo que escrevi aqui a coisa fica mais clara e esse título é mais inteligível…

                Mas aconteceu… Você já virou membro de um dos nichos manjados e conhecidos do pessoal de marketing. Tem o pessoalzinho da esquerda, que usa camiseta do Che Guevara e obrigatoriamente odeia os Estados Unidos porque Cuba é muito melhor e acha que espiritualidade é o ópio do povo. Tem o pessoalzinho do heavy-metal que só pode se vestir de preto porque laranja e azul são pura heresia e o cabelo tem que ser comprido, mesmo que no meio da cabeça você já esteja careca. Tem o pessoalzinho chique, que tem que mostrar coisas chiquérrimas no Facebook, viagens para Paris, presença em lançamentos de relógios e que curtem a vida em alto estilo. Tem o pessoalzinho gótico, que não pode tomar sol, acha lindo ser branco que nem papel e ama as coisas mais mórbidas possíveis… Tem o pessoalzinho academia, que toma hormônio pra ficar gigante e que divide o mundo entre frangos (os raquíticos)  e os monstros (musculosos). Tem o pessoalzinho intelectual, que acha que se destaca por ter lido setecentos milhões de livros e salpica cá e acolá palavras super raras para ver a cara de interrogação de todos como prova de sua evidente superioridade…

                Qual é o seu jeito de se sentir superior e especial? Esse texto é só para avisar que se for a espiritualidade, você será eternamente uma farsa, uma mentira que anda. Uma pessoa que por mais especializada que seja no assunto, não o compreendeu.

                Espiritualidade é para perder a vontade de ser especial e perder a sensação de que existe algo de errado que precisa ser mudado. Iluminação é em si a morte do ego, a vontade zero de parecer isso ou aquilo, nem que seja parecer aquele mestre transcendental e colossal.

              Um personagem a se defender, um ego a se alimentar, um público cativo a se satisfazer…  Se o mestre iogue é o seu personagem, a meditação e todo o seu mundinho espiritual, seja qual for, passa a ser um tiro no próprio pé.

                Mais um personagem foi erguido. Mais uma imagem a ser defendida. Mais uma ilusão no mundo.

                Não existe personagem mais idiota do que o espiritual, porque ele alimenta justamente o que deveria suprimir: a vontade de ser alguém. É como um membro negro da Ku Klux Kan… É tornar-se, com esse personagem, um centro-avante que só faz gol contra.

                Não é preciso condenar ou ficar com raiva do guru vaidoso, ou seu amigo mega avançado espiritualmente que julga todo mundo, onde fica flagrante a hipocrisia da coisa… Eles simplesmente estão agindo contra eles mesmos, a espiritualidade voltada contra eles e não conseguem jamais alcançar o que ensinam. A hipocrisia lhes sai caríssima. Não é raro ver discípulos mais evoluídos que seus pseudo-mestres, gente que seguiu mais verdadeiramente o que o falador só falou.

                A essência da espiritualidade é dissipar a vontade de ser alguém definido, com qualidades e objetivos. E é justamente nesse ponto que quase todo mundo se perde e não entende, fazendo o papel do bobo que quer ser importante espiritualmente.

                E mais coisas ruins vem da espiritualidade. Enamora-se do caminho e esquece do objetivo.

                Defender que aquilo que você faz é verdadeiro e que todo mundo devia fazer. Você quer porque quer explicar que ser um iogue é o topo do desenvolvimento humano.

                E o pior: você fica brava se falam que meditação não serve para nada e que essas bobagens que vem da Índia são para gente ignorante.

                Deus meu! Você ficou brava com isso! É importantíssimo entender a contradição aqui. Não podemos servir a dois senhores. Você está defendendo o personagem que você criou, mas a yoga serve para desintegrá-lo.E aí?

                A sua essência verdadeira jamais defenderá o boneco-iogue, o super-herói de Deus que veio salvar o mundo. A sua essência acha o pensamento alheio a coisa menos importante do mundo… Sempre, essa raiva ou medo que você sente no peito, é vontade de aceitação, é não aceitação do momento presente, é o oposto de espiritualidade.

                Se quer aprender a não ouvir seu próprio pensamento, você vai ouvir o dos outros? O que dizem o que não dizem? A verbalização é só a substancialização de um pensamento qualquer que aconteceu à aquela pessoa por inúmeros fatores. E você, um grande iogue, meditador de mão cheia, vai se importar com elogios ou críticas do parasita dos outros?

                E vemos nesses fóruns de espiritualizados pela internet a coisa mais ridícula do mundo. Ficam bravos discutindo entre si sobre que doutrina é melhor, qual satsang é mais evoluído, quem entendeu melhor o que é espiritualidade… Ofensas e ameaças… Vaidade, tudo vaidade.

                Aí você sente que é só mais uma afetação, uma vaidade, um campeonato imbecil de quem é mais sábio e espiritual.

                Um fenômeno engraçadíssimo e curioso acontece. O espiritualista que constantemente analisa seu status perante os outros espiritualistas e procura passar uma imagem de mestre, convencendo os outros de suas ideias e sua grandeza, se equivale à aquela menininha adolescente que está penteando o lindo cabelo para postar um selfie arrasador na internet, e na cabeça já ouve os elogios que virão.

                O espiritualista iogue-mestre-meditador! Esse é você? Que azar!

                Não importa quantos cursos você fez, não importa quantos anos você meditou. A única coisa que importa é a quantidade de paz interna que você possui, que vem do desapego a qualquer personagem ou situação que se julgue mais correto. O vaidoso espiritual é

                Se meditação é aceitar tudo como é, sem querer nenhum tipo de ação, o ato de meditar é contra ele mesmo. Você não consegue meditar se vai meditar.

                Você jamais se iluminará se acha que precisa se iluminar. O buscador que tornou-se um buscador profissional, assumiu o personagem, será para sempre um buscador, nunca o que achou.

                É preciso não virar mais um personagem zen… Um tipinho desses que fez da yoga e da vida espiritual mais um modo de existir mundano, nesse plano material. Um modo de extrair apreço alheio ou pagar as contas no fim do mês.

                As práticas são para renunciar à imagem e não para construir mais uma. As práticas são para estancar a impressão contínua de que estamos perdendo algo ou buscando algo.

“Sou importante!”. Essa é a praga que a espiritualidade deveria servir para dizimar e não é que as pessoas a usam para sentirem-se importantes? Olha a esquizofrenia da coisa!

Espiritualidade raiz.

Vejo gente aflita por mais um puja, mais um ritual, mais uma viagem à Índia, mais um contato com alguém iluminado. Isso vira o problema em si. As práticas passam a ser contraproducentes, são a razão do infortúnio, viram mais uma ansiedade que só mudou de nome.

                Sou importante! Essa é a praga que a espiritualidade deveria servir para dizimar e não é que as pessoas a usam para sentirem-se importantes? Olha a esquizofrenia da coisa!

                Ramana Maharshi dizia que para fugirmos do pensamento, o vestimos de polícia. Ou seja, para pegar o culpado, o ladrão, colocamos roupa de polícia nele… Jamais o pegaremos.

                O buscador é o ladrão fantasiado de polícia… É aquela hora que tentamos pensar que não estamos pensando e aí reparamos que isso já é um pensamento. Todas a ações pró iluminação são contraproducentes e contrárias justamente ao que se propõe, porque o objetivo dessas ações são o fim de todo tipo de ação. É o desejo de não ter mais desejos. Como fica a coisa?

                Não vista a vontade de ser especial de espiritualidade. Ladrão é ladrão…

                Quanto mais você corre em direção à iluminação mais longe você fica. É isso mesmo?

                Dá vontade de mandar a merda tudo isso e ir ver um futebolzinho na televisão ou tomar uma breja com os amigos a noite. Quer dizer então que quem nunca pensou em se iluminar, nunca meditou, nunca fez peregrinação de 400 dias de pé descalço numa terra dura e íngreme embaixo de sol de 40 graus, está mais perto da verdade do que eu que fiz?

                Sim, isso mesmo. Não são raros os relatos de gente que chegou à iluminação de um jeito besta e sem precedentes espirituais. E isso dá uma raiva danada em nós, os esforçados.

                Aí está a raiz do problema: esforço. Parar de ter que achar que tem que parecer ou ser algo é a iluminação em si. Então achar que tem que ser iluminado é aquilo que tem que cair, desaparecer…

                É por isso que muitos descrêem dos espiritualizados, porque é um nicho ótimo para encontrar gente nervosa, incoerente, preconceituosa, triste… Eles querem muito ainda serem especiais, como todo o resto, e viram mais uma legião de frustrados…

                Claro, no meio dessas pessoas existem os que simplesmente não entenderam o que é a espiritualidade, ou os que a usam conscientemente para fins escusos. Mas tento falar aqui aos que entenderam bem o que é a espiritualidade, mas não percebem as garras sutis com que o ego ainda os impede da liberdade final. Não percebemos como a espiritualidade pode virar só mais uma prisão, uma camisa de força, tão ruim quanto a do empresário rico que quer ser mais rico, do músico que quer ser ainda mais famoso, do esportista que quer mais títulos e aplausos ou da adolescente que quer ser a mais bonita e ganhar o menino mais bonito.

                Achar-se mais humilde é inclusive a mais sutil das vaidades e talvez a mais difícil de perder.

                A coisa é intrincada. Mas vamos percebendo cada vez mais essa vontade contraproducente de criar e manter uma imagem que agrade e impressione os outros, que mesmo sendo lindamente espiritual, com lindas ações de ajuda ao próximo e cheia de brilhinhos de purpurina, ainda é uma imagem construída, fake, a se defender. Somado a isso a eterna pressão de que algo está errado e precisamos corrigir, que o buscador espiritual também inferniza a ele e aos outros.

                Os mestres zen dizem que todo o zen budismo e a sabedoria que vem dele são no máximo uma mão que aponta para a lua. Mas as pessoas se apaixonam pela mão e perdem a lua, acham que o mapa é o território.

                Não se enamore desse personagem besta espiritual. Nossa roupa verdadeira é o silêncio e não aquela bata indiana roxa linda que faz você parecer que flutua e não que anda. Jamais se prenda a uma auto-imagem, pois ela é justamente aquilo que a espiritualidade quer dissipar.

                Nisargadatta Maharaj dizia que nosso problema é que nos identificamos com tudo. O processo de iluminação é não nos identificarmos mais com nada. Nada é nossa identidade. Na hora que nos identificamos com algo nos limitamos e temos algo a defender. Não faça do caminho espiritual mais uma identificação.

                Medite sem meditar. Espiritualize-se sem se espiritualizar. Alcance sem se esticar…

Importante

          Importante deixar claro que esse texto é um alerta e uma provocação… Jamais algo para te desestimular e gozar gratuitamente de suas tentativas de crescer espiritualmente. Pelo contrário. É um alerta para as armadilhas que se encontram nesse caminho espiritual e uma provocação ao estilo reductio ad absurdum, ou seja, mostrar com exemplos ridículos, como algo pode sair totalmente do que se propõe. Mas, muito importante: ainda que você se identifique e se veja nessas ridiculices – como eu me identifico e me vejo – ou seja, fazemos sim todo esse mise-en-scène para mostrar para os outros que somos avançados, importantes etc. e tal, saiba que algo em você está tentando legitimamente melhorar, soltar o fardo do ego… Eu sou culpado dessa farsa de “pessoa avançada”tanto quanto vocês e é justamente por isso que sei que é verdade, que todos fazemos isso… Ainda sim, nos sentindo impostores por dentro, sabedores que muitas vezes estamos fingindo sermos mais calmos e cheios de fé do que realmente somos, ainda sim, tenha certeza de que você está no caminho. Amo uma expressão que os americanos usam muito: “fake it, until you make it…”, que quer dizer mais ou menos, finja até que se torne legítimo, verdadeiro e você consiga… É essa a mensagem final que deixo a vocês, meus queridos impostores…