Paixão e gratidão eternas

Plenitude na escassez, silêncio no caos 

Ir para Índia foi sempre um sonho e ao mesmo tempo um grande medo.  O sentimento contraditório – agora vejo assim – parece um espelho que reflete o próprio caminho espiritual:  quero confiar absolutamente na vida e me deixar ir, mas quero que alguém me garanta que tudo estará bem… Bom, um pensamento anula o outro… As histórias maravilhosas de mestres iluminados e a sabedoria milenar vinda da mágica Índia, se contrapunham a relatos de pobreza, de diarréias e multidão, de gente que quis voltar no mesmo dia que chegou lá. Coube a árdua tarefa de “garantir que tudo estaria bem” ao lindo casal Gabi e Amedeo  (que organizaram o grupo para ir) , que muito mais corajosos que eu, já tinham desbravado o país há muito tempo. O modo apaixonado e inspirador com que me descreveram a viagem que faríamos, ainda que com algumas ressalvas para que ninguém se assustasse demais por  lá, fez com decidíssemos – eu e minha mulher – a finalmente ir, depois de tantos anos de vontade, mas falta de iniciativa.

                E o que dizer após 30 dias por lá? Sim, estavam lá os mendigos, a confusão,  o lixo espalhado, as buzinas infernais por todo lado… Mas como explicar que no meio de tudo isso me senti feliz, em paz  e seguro?  E aí está o grande mistério… Existe uma Índia sobreposta à Índia visível…  Infelizmente você não vai poder tirar fotos para poder mostrar aos amigos e o que é pior, não vai conseguir fazê-los sentir o que você sentiu pra provar que ela existe. Não é todo mundo que visita essa Índia e é por isso que os relatos são tão desencontrados. Não é o avião nem o trem que vai te levar até lá, mas sua maturidade espiritual ou uma inocência que permite ir além dos pré-julgamentos da razão para só simplesmente sentir. Quem não achou passagem para esse lugar vai rir, dizendo que é fantasia ou poesia da sua cabeça para enfeitar a viagem.  Mas essa Índia é muito mais real que a superficial que só se apresenta aos cinco sentidos.  E por ressonância, ela faz vibrar dentro de você um lugar equivalente, que é o seu eu verdadeiro, ou país de origem, sua casa, livre do pensamento caótico, suas buzinas internas. E é por isso que nos sentimos tão em casa na Índia, matando uma saudade que – no meu caso –  não podia ser saudade porque eu nunca havia estado lá… Mas era isso que eu sentia o tempo todo, me reencontrando com algo amado e há muito esquecido.

                Seus amigos no Brasil vão te olhar com uma cara de tédio infinito  quando você disser que sentiu uma paz imensa, que mergulhou num silêncio maravilhoso… Coisas abstratas demais ou que parecem clichês new age de hippies bobinhos. Aí você mostra as fotos dos lindos templos, das mulheres com sáris coloridos, de certas bizarrices que ocorrem nas ruas… Tudo para substancializar mais a viagem e ganhar a atenção deles de volta… Mas não é nada disso, apesar de ser isso também. Para te agradar vão dizer “que legal essas fotos”, mas na cara deles vai estar estampado: “por que você não foi pra Europa com essa grana?”.  Mas você não vai ligar muito não. Em nenhuma outra volta de uma viagem a opinião dos outros  pareceu tão desimportante e insignificante. Nunca pareceu tão pouco relevante provar que você se divertiu e que valeu a pena. Tenho vontade de contar o que vivi por lá apenas a  algumas pessoas, as que podem entender . Para outras logo desconverso e falo apenas que foi “interessante”, “muito doido” .

                Na ida e na volta ouvi coisas do tipo: a Índia? “Acho que é o último lugar que eu iria na vida”.  Mas está tudo certo… Eu dou risada por dentro como quem descobriu um tesouro que não é para todo mundo, mas que tem certeza que é infinitamente valioso.

                As pessoas detonam a Índia como país sujo, pobre e fedido, e descrêem de seus mestres porque se o que fazem fosse bom, seria um país rico e sem injustiças. Em primeiro lugar,  é uma parte bem pequena dos indianos que realmente entendem o que grandes mestres querem dizer. Apesar de extremamente religiosos, a maioria ainda está nas trevas em relação ao ego e ao verdadeiro propósito dos rituais que praticam. Não é porque a Inglaterra nos deu escritores e cientistas maravilhosos, que todo inglês que você encontra na rua vai ser um mestre das letras e da física. Mas que tem uma fonte de sabedoria vinda de lá, é claro que tem… O mesmo na Índia. Nada tira deles que os livros místicos mais sábios escritos pela humanidade, os Vedas, vem de lá, e rastros dessa sabedoria milenar estão por todos os cantos.

                Em segundo lugar, o que a Índia mais deixa claro, sua mensagem para o mundo, é que a vida interna é muito importante, no mínimo tão importante quanto a externa. O ocidental hoje, em sua maioria, considera que a vida na Terra, material, é a única que existe e nada mais importa. Ser um grande profissional, um vencedor, ter um carro do ano, fama, um Facebook forrado de fotos de viagens e festas e etc., são sinônimos de verdadeira felicidade . Se nossa limpeza, tralhas eletrônicas, faculdades, empregos e obstinação em subir na vida fosse tão bom assim, não veríamos tanta gente deprimida, raivosa e perdida.

                Mas gosto dos dois lados do mundo, acho que formam algo semelhante a um único cérebro onde um lado pende mais para o objetivo, a ação e o prático, e o outro hemisfério para o abstrato, místico, meditativo. Em outro artigo falarei mais sobre isso.

                Talvez Deus tenha mantido o local mais místico desse planeta como também o mais caótico justamente para formar uma grandiosa metáfora de como o externo nada tem a ver com a paz interna. Se você quer fazer compras, vá para Miami.  Se você quer ver uma cidade chiquérrima vá para Paris.  Se você que ver praias bonitas, fique no Brasil. Mas se você quer uma viagem por dentro de você mesmo, ir para sua casa interna, vá para Índia… Lá tudo remete ao poder que você tem de encontrar a felicidade e o silêncio dentro de você e não fora. Mas, além de tudo, a Índia também é fisicamente linda em muitos pontos, saborosa em muitas comidas e fascinante de passear se você quiser ser apenas um turista. Mas deixar de ser um turista de si mesmo é o grande presente desse maravilhoso lugar.

                Fiz a viagem de volta ao Brasil vestindo uma camiseta que tinha a bandeira da Índia estampada. Fiz questão por gratidão e por vontade de trazê-la comigo de alguma forma. A vontade de retornar é grande, mas mesmo que isso nunca mais aconteça, entendo que aquela parte invisível dela estará acessível em todos os lugares que eu estiver. E além de tudo, não é uma viagem que vai ficar na memória, mas sim como uma presença física permanente, como alguém que ganhou um novo par de braços, se metamorfoseando em algo mais perto de um  Shiva do que do ratinho assustado de outrora. Eu realmente não sou mais a mesma pessoa…

                Nada relatado aqui é exagero, mas sim capenga no tentar explicar o que foi essa viagem.

Amma

Na primeira parte da viagem, ficamos aproximadamente 20 dias no ashram da Amma, que você deve conhecer como a guru dos abraços ( se não conhece, dê uma procurada no YouTube, vale a pena). Era num lugar muito lindo. A paisagem vista de cima do prédio onde ficamos era irreal de tão bonita. Estávamos situados entre um rio e o mar, dois maravilhosos braços de água.  O ashram era bem grande com um templo muito bonito no centro – em homenagem a deusa Kali – e vários prédios ao redor, várias cantinas, um gigantesco hall, lojas e até um banco…  Diferente da imagem que eu tinha de um lugar assim. Mas tudo com a Amma é grande. Seu trabalho social é impressionante.  Ao longe de onde ficamos, podia-se ver a imponente universidade que ela criou. Impressionante. E ficaríamos dias aqui relatando quanta gente ela ajudou. Ela que era uma menina simples, nascida numa vila pobre de pescadores (ali mesmo onde é o ashram), tornou-se uma das figuras mais fortes da história da Índia. Diferentemente de outros gurus famosos, Amma alia a vida espiritual a um enorme disposição para a ação, para arregaçar as mangas e fazer algo de prático no mundo. Mais de oitenta escolas, creches… Seu nome espiritual quer dizer simplesmente Mãe, e é isso o que ela é para milhares de pessoas que a visitam diariamente. Há um dito lá que diz muito sobre seu poder e influência: “se você quer que alguma coisa mude por aqui, peça para a Amma, porque se pedir para o governo da Índia, não dará em nada…”

                Amma dá o darshan quatro vezes por semana. “Darshan” significa “ter à vista”, “olhar”,  poder ver um ser reverenciado, um mestre. É simplesmente aquele momento onde o guru, um ser iluminado, está em um lugar onde pode ser visto por seus devotos. A mera presença de uma pessoa assim, somente olhar para ela, já pode te le var a um estado mais profundo de consciência. No caso da Amma, seus darshans são bem diferentes… Ela não fica só de longe para ser observada. Ela recebe seus devotos um a um e os abraça. Um caso sem precedentes na milenar relação entre guru e discípulos. Amma criou essa forma de interagir que é muito mais difícil do que ficar simplesmente parada, à vista, como os outros fazem.

                E o que dizer desses abraços? Gente de Deus! Ela começa a abraçar lá pelas onze da manhã. Fica num hall imenso e central ao ashram, portanto, tudo que vamos fazer por lá acabamos passando por ela. E as horas vão passando… Você toma café as onze ela já está lá abraçando… As duas da tarde você vai almoçar numa das cantinas que tem lá e lá está ela abraçando. As cinco da tarde você da mais um passada por lá porque é caminho da aula de meditação que você vai fazer. E lá está ela, abraçando.  Você decide voltar pro quarto porque bateu um cansaço, e lá está ela abraçando. As dezenove horas bate uma fome e você vai jantar. Passa pelo hall e lá está ela abraçando. Você come olhando para ela, ela sorrindo o tempo todo e pensa: não é possível. Acaba o jantar e você vai dar um passeio por ali. Conversa com algumas pessoas. Um sono muito grande, já são dez da noite. Antes de subir você decide passar de novo no hall para ver como ele fica depois de ela ter ido embora. Mas ela está lá abraçando… Você fica bestificado. Senta e fica olhando ela por duas horas dando abraço porque a coisa é hipnótica. Nunca fica uma coisa automática, ela abraça com amor cada um… Não existe um só momento que ela para de abraçar e é muito mais que isso porque enquanto abraça ela resolve mil questões com outras centenas de pessoas que ficam ali requisitando sua atenção… Fala no celular, dá ordens… Você vai dormir à meia noite, exausto só de ver, mas ela não…

                No dia seguinte você fica sabendo que ela só saiu dali as três da manhã… E as onze vai começar tudo de novo. É um milagre que pode ser visto por qualquer um que quiser chegar. É um ser absolutamente sem ego, que só pensa nos outros e tudo que faz é pelos outros. Mora num quartinho ínfimo no ashram… Quem se ilumina não tem nada a pedir ou desejar. Ela já tem tudo. A única vontade dela é que os outros tenham o que ela tem, que cheguem a esse nível de felicidade.

                Recebi três abraços de Amma e foi tudo muito emocionante. No terceiro e último, era dia do meu aniversário. Todos pediram para eu avisar quando estivesse com ela. Ela fala algumas coisas no nosso ouvido enquanto abraça, mas não dá para entender. Nesse dia, interrompi para dizer em inglês: é meu aniversário, é meu aniversário… Ela então pegou um chocolate e pôs na minha boca, me jogou um monte de pétalas e me deu uma maçã… Muitas bênçãos…  Realmente um aniversário muito especial… Inesquecível.

                Saí de lá emocionado e comi meu presente com reverência,  como um ritual, como quem internaliza para sempre uma benção infinita.

                Amma pede que não se tire fotos ali no ashram e é compreensível. Estamos ali para uma coisa muito mais importante do que fazer turismo e selfies… Mas os dias lá estarão para sempre gravados em minha memória e meu coração.

                 Passamos o Natal e o Ano Novo lá. Se eu gostei?  Vai ser difícil querer passar em outro lugar daqui para frente, vamos dizer assim…

                Além dos abraços, duas vezes por semana Amma faz os Bhajans, canta lindamente músicas devocionais. A energia que sai dali é inexplicável. A hora que ela vai embora é arrepiante. É a vez de seus filhos e filhas cantarem para ela em agradecimento. Toca-se um sino e um tambor e ela fica lá paradinha ouvindo uma música linda que todos cantam… Inesquecível.

                Há ainda meditações guiadas por ela e um dia da semana ela serve comida para todo mundo, um ritual lindo.

                 Esquecemos que existia um mundo lá fora e que tínhamos uma vida no Brasil. Parece que nada faltava ali… Era um cotidiano pleno, delicioso…

                Última coisa importante a se dizer é que o fato de Amma passar horas ali abraçando as pessoas , de aquela cena estar ali tão exposta e flagrante, sem parar, ainda transmitida ao vivo em dois telões enormes, cria uma urgência em todo mundo que está vivendo aqueles dias ali,  um impulso incontível para fazer alguma coisa por alguém, a querer ajudar, a se mexer…  Nos dá vergonha dizer que estamos cansados ou que não podemos ajudar. Ela nos inspira o tempo todo, não dá pra esquecer. Não é aquele discurso lindo que a pessoa faz de ajuda ao próximo por meia hora e depois some. Não… Ela está ali, fazendo, na sua cara. É pura ação e zero retórica. O exemplo que ela está lá dando é visceral e entra por nossas veias, emana de onde ela está e nos empurra,  faz com que todos queiramos também fazer algo. Isso me marcou demais!

“Se quisermos eliminar os inimigos que se escondem nos lugares mais profundos de nosso coração, devemos servir o mundo”

                                                                                                                                                                                         Amma

Ramana

Nosso grupo estava tão apaixonado pela Amma que muitos não queriam a segunda etapa de nossa jornada: ir conhecer Tiruvannamalai, cidade onde fica o monte sagrado Arunachala e ashram do grande mestre Ramana Maharshi.  Eu, de minha parte, com todo o respeito a Amma, ainda que indo embora já com saudade, estava empolgadíssimo de conhecer onde viveu tantos anos aquele que considero meu guru…

                Interessante que eu estava aberto em sentir se talvez Amma pudesse ser meu guru. Afinal de contas, Ramana faleceu há mais de sessenta anos e muitos dizem que é preciso um guru vivo para que possamos progredir mais rapidamente. Para receber Amma como seu guru, basta pedir a ela durante o abraço que lhe dê um mantra. Você terá um mantra único, seu, feito para você, que será sua ligação com ela, para que ela te ajude na evolução espiritual até a iluminação. Quanto mais você fizer o mantra, mais forte ficará esse vínculo guru/discípulo.

                Eu estava disposto a aceitar Amma como meu guru, mas interessante que na hora que falei “mantra, mantra”, parece que ninguém ouviu. As pessoas que a ajudam devem te dar uma ficha escrito “mantra” quando você pede… Não tenho certeza, porque o momento com ela foi muito rápido, mas acho que ouvi ela dizer em inglês: no mantra, no mantra… Todos do grupo receberam seus mantras, menos eu… Acho que não foi por acaso. Eu parecia um papagaio dizendo “mantra, mantra…”, mas ninguém ligou… Foi algo significativo. Foi uma afirmação para mim que meu guru já estava definido.

                Ainda que como grande Mãe, um ser no estado evolutivo de Amma sempre estará com você – não tem como fugir do amor dela – eu confesso que meu coração ainda estava em Ramana… Não há traição a ela ou a qualquer outro ser iluminado, pois são todos oriundos da mesma fonte. Há apenas manifestações da divindade que você sente mais ou menos atração, seu caminho é único.

                Quanto ao fato de ser obrigatório ter um guru vivo, digo o seguinte.  Ramana prometeu que não iria a lugar nenhum quando estava para morrer e via a aflição no rosto de seus discípulos. Ele afirmava sempre que não era aquela forma física. Que aquilo inclusive era uma distração a ser vencida. Só quem sentia que ele era aquele corpo tinha medo da sua morte. Quem o sentia dentro não se preocupava. Não teria pra onde ele ir, pois ele está em tudo, esparramado por todos os lugares, pura consciência que é o substrato do universo. Ramana é mais íntimo meu que qualquer pensamento, que meu corpo, que a própria respiração em mim. Só quem ainda precisa de uma referência física precisa estar perto de um corpo, uma carne. Mas essa reverência a uma coisa mais objetiva é justamente algo que uma hora ou outra tem de ser vencida para se avançar no caminho.  Vamos falar muito disso em outros artigos.

                Não acredito que seja necessário um guru vivo, ao menos para mim. Acredito na promessa de Ramana, acredito que está vivo sim… Mais perto do que nunca.

                Fomos de trem para Tiruvannamalai. Foi uma viagem meio tensa, não sabíamos direito onde pegar o trem e nos avisaram que tínhamos dois minutos para entrar, senão perderíamos… Estávamos cheios de malas! E mil histórias dos atrasos absurdos nas estações fazia da viagem um enigma. A Índia é assim, caótica e desorganizada… Mas eu parecia uma criança feliz indo para a Disneylândia. Sim, a Índia é a Disney dos místicos… E Ramana para mim sempre foi o ápice da Índia. Não tinha como não estar entusiasmado e feliz. Eu falava baixinho com Ramana para que nos pusesse a todos a salvo no trem, porque eu tinha vindo de longe para ver Arunachala e onde tinha vivido o corpo de meu mestre…

                Deu tudo certo.

                Tive a grande emoção de pisar no lugar onde Ramana ensinou e viveu por 50 anos. Indescritível.

                No segundo dia lá, demos uma volta ao redor do monte sagrado Arunachala. Acordamos quatro e meia da manhã para poder sair as cinco do hotel. O guia que nos levaria, era neto de um discípulo direto de Ramana, que o conheceu vivo e conviveu com ele em seu ashram.

                 A volta foi muito emocionante. Víamos gente meditando pelas ruas, parávamos em vários templos para rezar… Em um deles, encostávamos a cabeça em pontos chave de suas paredes, e uma energia poderosa saía dali… Aprendemos a saudar o deus com cabeça de elefante, Ganesh. Pedimos a ele que removesse todos os obstáculos de nossa vida e de nossa mente.

                Demorou quase 6 horas para completar a volta. Eu adorei cada minuto…

                Ramana recomendava essa volta ao redor de Arunachala. Dizia que a montanha era capaz de ajudar a remover o ego e aquietar a mente.

                No mesmo dia visitamos o enorme templo de Shiva, onde Ramana ficou quando chegou ainda com dezoito anos na cidade. Ele só pensava em meditar e causava muito problema por isso.

                No dia seguinte, pela manhã, visitamos uma mestra chamada Shiva Shakti. Seu darshan é bem diferente, ela não fala nada. Como diz o ditado, entra muda e sai calada. Existe uma espera até ela entrar que já é emocionante. Não sabemos onde ela está e por onde entrará. De repente, sem qualquer anúncio, ela está lá… Uma presença impactante, mas de tão etérea, sem peso… Anda muito muito devagar e apenas olha para as pessoas, fazendo alguns gestos suaves com as mãos, abençoando os presentes. Achei incrível a velocidade, o ritmo daquela mulher. E era como se docemente nos impusesse esse ritmo seu, um ritmo um milhão de vezes mais lento e suave de existir. Lento no sentido de paciência, devoção, reverência ao agora. Amei! Saí mais calmo dali, como se aquilo tivesse me pegado de jeito, como se tivessem me dado um calmante poderoso,  e os gestos e andar flutuante dela pareciam ecoar em loop dentro da minha cabeça. Meus gestos em si ficaram mais suaves…

                Foi uma preparação maravilhosa para dali irmos para o Arunachala, dessa vez para entrar nele, subir uma de suas trilhas, justamente a que levava à casa e à caverna que Ramana morou, e lugar onde ele todo dia passeava. E foi tudo mágico. meditei em vários pontos e senti coisas muito especiais, principalmente dentro da caverna que ele passou 16 anos de sua vida.

                Ramana recomendava a sempre que estivéssemos caminhando ao redor ou pelas trilhas dentro de Arunachala, que fizéssemos constantemente o processo de auto-investigação que descrevo melhor nesse outro artigo.

                Ramana era o contrário de Amma. Não era um paizão para as pessoas. Extremamente calado, Ramana não recomendava nem mesmo o trabalho voluntário. Ele tinha até uma grade que o separava das pessoas que iam visitá-lo, pois não gostava que lhe tocassem os pés, como é normal na Índia… Olha a diferença para a Amma dos abraços, a mãezona.

                Muitas vezes, as pessoas lhe faziam perguntas e ele as ignorava. Era como se não estivesse ali.

                Então porque senti essa proximidade tão grande com ele? A Amma não é muito mais amor e acessível? Pois bem, até a devoção não faz parte do caminho de Ramana. Ele não gostava de homenagens, não vestia roupas que parecem de santo ou mestre iogue, nada…  Vestia apenas um pano branco para tapar os genitais que parecia uma fralda.

                Mas tudo isso me atrai. Justamente porque faz parte do caminho que ele ensinava de esquecer do ego, de si mesmo, esse “eu” chorão, pedinte, e até mesmo esquecer do devoto em nós, o reverente, o buscador e  o religioso. Esquecer a individualidade, a separação… O fato de Amma ser chamada de mãe e como seus discípulos a reverenciam como tal, pode ser um entrave para a iluminação. Mãe pressupõe um filho… E o que Ramana queria nos mostrar era a inexistência do outro, do segundo…  Ele queria mostrar que somos Ramana e não discípulos dele. Como se diz nos Vedas, Brahma é incontemplável. Você jamais entenderá quem é Brahma se reverenciá-lo, se refletir sobre ele. Para ter a consciência de Brahma, só sendo Brahma. Se você objetifica o guru, ele vira isso mesmo, mais um objeto, ele lá você aqui… Fora, externo, mundano…  O que para Ramana é sempre irreal, ilusório, passageiro e principalmente: limitador.  Ramana deu a si mesmo, para você ser ele e não para ele endireitar sua vida, te dar um emprego melhor ou uma casa nova. É nesse sentido que considero Ramana superior a todos os outros gurus que já conheci. Ele fala de coisas maiores, infinitas… Ela jamais quis consertar o mundo, esse mundo terreno, porque para ele é o que é, perfeito em ser o que é e nunca vai mudar. O mundo tem função de te expulsar, de te levar de volta para casa, porque aqui não é sua casa. É por isso que sua vidinha aqui nunca vai ser um paraíso, um mar de rosas… Ela é dual e a alegria dos prazeres daqui estão sempre unidos aos desprazeres em igual medida. Ramana dizia que a iluminação vinha justamente quando a pessoa desistia desse mundo. “Pra mim deu!”. Nós ainda não somos iluminados porque ainda não acreditamos totalmente em Ramana. Ainda não achamos que somos ele e ainda achamos que algo desse mundo nos trará a verdadeira alegria que procuramos… Mas Ramana sempre repetiu: vocês estão tentando solidez num mundo que é puro sonho, não vai dar certo…

“Felicidade é a sua própria natureza. Não é errado desejá-la. O errado é procurá-la fora quando na verdade ela está dentro”

                                                                                                                                                                                          Ramana Maharshi

Quando ouvi esse poema no fim do filme “A Forma da Água”, logo pensei em Ramana e no fato de muitos considerarem um guru vivo algo mais poderoso e valoroso. Decorei e o repeti várias vezes em homenagem a ele, em lealdade e confiança ao que prometeu que estaria sempre tão presente quanto quando estava vivo. A forma é só uma distração… “Impossibilitado de perceber sua forma, eu te encontro à minha volta. Sua presença preenche meus olhos com Seu amor, torna meu coração humilde, porque Você está em todo lugar”.

“Unable to perceive the shape of You, I find You all around me. Your presence fills my eyes with Your love, It humbles my heart, For You are everywhere.”

                                                                                           from the movie  “The Shape of Water”

Eu e minha mulher com Arunachala ao fundo. Maravilhoso…

               Parece uma contradição dizer que senti Ramana mais presente aqui comigo depois dessa ida ao seu ashram, porque acabei de afirmar parágrafos acima que ele está em toda parte, então porque não senti-lo no Brasil mesmo?

                E existem discípulos evoluídos muito próximos a Ramana no Brasil que nunca foram à Índia. Não acho que seja obrigatório. Não me sinto na frente de alguém que nunca esteve lá, pelo contrário. Talvez no meu caso tenha sido necessário para impressionar mais meu subconsciente e me abrir, o que para outra pessoa mais madura espiritualmente não é preciso. Apenas acho que no meu caso, no meu caminho, foi fundamental. Como disse no começo desse artigo, a Índia veio comigo, e a presença de Ramana dentro de mim ficou mais evidente, mais forte.  Foi necessário para quebrar meus bloqueios, meu ceticismo, minha eterna divagação e incerteza.

                Fiquei vinte dias no ashram da Amma e apenas três na cidade de Ramana. Amma estava viva, presente lá todos os dias. Ramana morto há 60 anos… E ao deixar a Índia, Ramana estava muito mais presente em mim do que Amma! Me marcou muito mais… É só uma questão mesmo de quem é seu guru, qual o seu caminho próprio e único…Parece ser uma coisa que nem é decidida por nós. No grupo de mais de dez pessoas, apenas eu sentia assim. Todos estavam com mais saudade da Amma do que dispostos a saber mais quem era Ramana. E está tudo certo assim. Cada um tem o seu caminho.

                Comprei uma foto gigante de meu mestre e a carreguei nas mãos por todo o vôo de volta ao Brasil para protegê-la. Não queria amassar de jeito nenhum, mas sem querer uma hora, dentro do avião, meti o cotovelo nele. Ficaram umas marquinhas, mas tudo bem… É para lembrar de como veio.

                 Estar na Índia foi como finalmente entrar fisicamente num mundo que antes estava só nos livros que eu lia desde adolescente… Ver aqueles sadhus vestidos de laranja pelas ruas, as vacas, os macacos, tanta gente marcando seus terceiros olhos com sândalo, o aroma de incenso, poder olhar para Arunachala, andar em suas trilhas, sentir o poder dos templos e ashrams, ouvir as pessoas entoando mantras em plena rua… Sentir no coração que a qualquer momento poderíamos cruzar com um mestre, como ouvimos em tantas parábolas hindus.  Eu olhava sempre desconfiado, mesmo para o mais judiado dos moradores de rua de lá que me sorria: será que você não é iluminado?  Até o que me pedia dinheiro eu olhava com certa devoção… Auto-sugestão? Talvez, mas o clima de sagrado lá nos afeta profundamente… Não como algo ilusório, mas sim, extremamente palpável…

                E meu amor aos pães indianos (aprendi 7 variedades que não conhecia), às imagens de Ganesh (trouxe muitas (vi durante uma meditação crianças com cabeça de elefante me envolvendo de mãos dadas, pequenos Ganeshs super felizes, e isso me marcou muito)) e todas as pessoas incríveis que conheci nessa viagem, brasileiros, indianos e de muitos outros países… São milhares os europeus e americanos que vão para lá procurar um sentido para suas vidas…

                Para terminar só posso dizer: Índia, me convida de novo pra te visitar? Saudade, gratidão… Paixão eterna. India forever!

Comendo um puri, um dos inúmeros tipos de pão indiano que amo… Engordei na Índia por causa deles!

Entrada do ashram de Ramana.

       Sonho pós-Índia

                Na primeira noite que dormi no Brasil – depois de um mês de Índia – tive um sonho muito interessante.

                Exausto de uma viagem que dura mais de vinte horas, desmaiei logo quando cheguei em casa.

                Comecei a ter um sonho maluco. Eu estava dentro de um lindo templo na Índia, com aquelas colunas grossas de pedra sustentando o teto, com paredes cheias de imagens de Shiva, Ganesh e etc. Ambiente escuro, com poucas fontes de iluminação, apenas algumas velas. Eu estava sozinho…

                Mas quando eu olhava para o chão desse templo, estavam os brinquedinhos da minha cachorrinha, minha poodle chamada Jolie. Suas bolinhas e seu bichinho de pelúcia… Além disso, todas as coisas que eu havia trazido da Índia estavam lá e minhas roupas sujas todas esparramadas. Eu pensei: “nossa, pra que que eu trouxe tudo isso para o templo? Que bagunça! Que falta de respeito com o lugar estar tudo espalhado assim! Vou arrumar as coisas, assim quando o swami que cuida do templo passar, vai ser mais fácil de ele abençoar tudo… Acho que era isso que eu queria trazendo essas coisas pra cá…”

                No meio desses pensamentos e da arrumação no sonho, eu acordei e pensei: “nossa que sonho doido, achei que estava na Índia, num templo”. Virei pro outro lado e dormi de novo.

                Quando acordei de manhã, achei curioso que todas as minhas coisas trazidas da Índia, mais os brinquedos de minha cachorrinha e minhas roupas, estavam todas arrumadinhas num cantinho! Eu realmente, meio sonâmbulo, arrumei tudo, certo de que estava num templo. Que bizarro! Entendi então que as imagens que eu via estavam misturadas de sonho e realidade, meio meu quarto (por isso vi minhas coisas no chão que realmente estavam lá) e meio o templo ao meu redor, projetado de alguma forma pela minha cabeça… Eu realmente, fisicamente, andava pelo templo, mas via algumas coisas do quarto também…

                Eu nunca havia tido um sonho assim… Pelo que eu saiba, nunca fui sonâmbulo.

                Senti que algo da Índia realmente tinha vindo comigo, eu estava com meu templo particular, perpetuamente dentro dele… Um templo móvel! Talvez seja apenas uma representação astral de estar agora inserido num estado mais espiritual, de reverência e de paz, coisas que sentimos num templo, mas que podemos (esse é o objetivo) carregá-lo sempre conosco, não só quando estamos num lugar assim… O espírito da Índia é um particular estado de consciência, uma reverência perpétua de quem está sempre inserido no sagrado…No templo!

Foto que tirei dentro do templo no ashram de Ramana Maharshi

Muitos indianos nos paravam para tirar foto conosco. Acho que nossa brancura de cândida era uma atração extravagante para eles…

Ritual de renascimento. Uma das inúmeras coisas interessantes que fizemos durante a peregrinação ao redor de Arunachala, aconteceu nesse pequeno templo. Tive que passar por uma fresta estreita, onde só de lado meu corpo cabia e conseguiria sair. Fui me arrastando deitado no chão com a ajuda de uma só mão, pois a outra tinha que ficar rente ao corpo para ele não entalar. Esse buraco simbolizava um útero e nossa saída dele um novo renascimento. Deu medo, claustrofobia, medo de entalar… Mas foi muito legal ter aceito o desafio…

Foto que tirei de Arunachala no começo de nossa volta, o sol ainda não tinha nascido.

Meu bolo com símbolo do OM. Festa surpresa gostosa. Aniversário comemorado no ashram da Amma… Especial.

Vista de nosso prédio do templo de Kali no ashram da Amma.

Vista do nosso hotel, de frente para Arunachala.

Vídeo com algumas imagens da nossa viagem para a Índia