Somos Pessoa

Somos milhares

Fernando Pessoa sabia como poucos que nós humanos não formamos um “eu” sólido definível. Somos plurais, variados e principalmente incoerentes, ambíguos, contraditórios. Contemos multidões como diria Walt Whitman. Quando alguém pergunta “você está sendo você mesmo?” ela não faz noção do quanto isso é complicado de responder. Somos muitas coisas… Quis colocar Fernando Pessoa na capa desse site para sempre nos lembrarmos disso, que por mais que gostemos de bancar o coerente para os outros, seguir uma linha reta, fazer um tipo, a incoerência é nossa característica mais verdadeira e profunda. O que? Que absurdo…

Não existe um só crente que volta e meia não se pega questionando quietinho se Deus realmente existe, se é bom… Não existe um desapegado nesse mundo que volta e meia não pega com saudade de algo ou alguém… Não existe um guru que seja a encarnação completa do que fala… Somos muitos. Somos zen em algumas coisas, somos fera em outras… Somos sentimentais aqui e frios ali. Ajudamos uma criatura e desprezamos outra sem explicação. Amamos e deixamos de amar, mudamos de gosto, enjoamos, damos uma de socialistas, mas somos esnobes e exibicionistas, queremos apreços e damos uma de “não tô nem aí”.  Somos comunistas caviar, somos ateus supersticiosos, somos capitalistas que reclamam quando alguém está rico demais, e não somos nós. Dizemos que dinheiro não importa, mas damos mais importância para quem está com sucesso financeiro. Pedimos que os outros acreditem em nossos planos que um dia vão dar certo, mas acreditamos só em quem agora já mostra resultados… Somos bons num dia de alegria e terríveis num dia escuro. E por aí vai…

Quem um dia já não se assustou com a acidez de um bonzinho ou a doçura de um carrasco?

Um historiador de Pessoa calcula que ele possuía 127 heterônimos, personas inventadas por ele que escreviam livros, poemas e tinham visões diferentes da vida.

Robert Hass, poeta americano, diz: “outros modernistas como Yeats, Pound e Elliot inventaram máscaras pelas quais falavam ocasionalmente… Pessoa inventava poetas inteiros.”

Todos os biógrafo consideram a verdadeira pessoa de Pessoa um indecifrável enigma já que ele estava sempre dentro de algum personagem até quando mandava cartas na vida real. Eu digo que somos todos assim… Milhares de fragmentos heterogêneos com um só nome imposto de batismo que não faz sentido algum… Álvaro de Campos? Ricardo Reis? Alberto Caeiro?  Somos todos e não somos nenhum… Somos vastidão.

Somos todos no fundo no fundo Pessoa… Que nome bom e genérico para colocar qualquer característica… é uma persona… Uma máscara que vai virando outra conforme o tom do momento.

Não se faça de coerente… Eu sei que você não é…

Mantenham-se perspicazes e cheios de fé.

 

Caricatura de Fernando Pessoa feita por Almada Negreiros. [FSP-Mais!-16.11.97]

Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

 

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas ás emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções

 

Fernando Pessoa

 

 

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