Continuando minha intenção de limpar a mente, tirá-la do estado impróprio para banho, deixando-a cristalina, apta a discutir qualquer coisa que seja, vou falar hoje sobre uma de nossas maiores prisões: nossa língua. E para falar mal dela vou ter que usar ela mesma, não tem outro jeito…
Ao ler Aristóteles tive meu primeiro choque ao ver alguém questionando o próprio instrumento que usamos para pensar, que é nossa língua. Até então, jamais havia tido sequer um pequena percepção de que o modo como penso e analiso as coisas é fruto de hábitos e vícios de linguagem, da própria estrutura da língua e da gramática que utilizo. Afinal meu repertório de palavras, o modo como uso o substantivo, predicado e verbo, parecia tudo o que existia, o princípio e essência de todas as coisas, a base para enxergar e discernir o mundo. Não nos perguntamos de onde aquilo veio e não desconfiamos de que podem existir outras e mais abrangentes estruturas lingüísticas para pensar. A língua, que deveria ser um instrumento para descrever a realidade, acaba virando a realidade em si, moldando o modo como enxergamos as coisas, pois não somos capazes de ir além daquilo que ela pode nos dar ou mesmo nos habituamos a usar muito menos do que ela poderia por vícios imperceptíveis. Passamos o dia submersos, soterrados e atormentados com frases e mais frases borbulhando pela mente: palavras, palavras, palavras…e na maioria das vezes, formando idéias absurdamente reducionistas que impõem a sensação de vazio e fatalismo, uma escravidão insuspeita, uma cegueira auto-imposta, totalmente limitadora para nosso objetivo aqui de discutir as coisas de forma limpa.
A yoga, como veremos em outros artigos, quando eficientemente praticada, nos faz perceber que não somos esse fluxo ininterrupto de frases. Apesar de sentirmos que esse desenrolar vertiginoso de idéias geradas por nossa língua é o que temos de mais íntimo em nós, descobrimos um nível mais profundo, muito mais “íntimo”, tão perto de nós que se torna invisível, principalmente devido ao “barulho” feito pela mente automática. Ele consiste na consciência que apenas contempla essa atividade febril do cérebro, mas não faz parte dela. Nessa consciência mora nossa vontade, que pode alterar a forma como essa mente automática funciona. Ao observar que não somos essa mente e tomarmos certa distância dela, podemos tomar posse, pegar as rédeas da carruagem que corria desvairada e começar a direcioná-la conforme aquilo que nos seja útil e preferível. Pior escravidão é aquela que nem percebemos que existe. A yoga e a auto-análise que estamos fazendo aqui nesses textos, são instrumentos de percepção dessa escravidão à mente inferior, que jamais será percebida pela maioria das pessoas que se julgam vítimas de tudo menos delas mesmas. Sua mente é seu carrasco, mas pode ser seu paraíso. A mente é fiel escrava, mas cruel senhor. Ela forma idéias terríveis que você aceita sem questionar, pois acha que teve liberdade para pensá-las, mal sabendo serem frutos de condicionamentos, medos, cultura de massa, padrões etc.
Nossos pequenos modus operandi são tão patéticos, mas ao mesmo tempo tão habituais, que nem ao menos percebemos que eles existem. Passamos quase o dia todo utilizando o seguinte e avançadíssimo esquema:
Substantivo + Verbo + Adjetivo
Ou seja,
Essa mulher é uma Idiota…o dia hoje está chato… o ser humano é podre…eu sou infeliz…eu sou isso….segunda-feira é uma chatice…
A promiscuidade de nosso vício maior: o tão amado e perigoso verbo “ser”. Como seria nosso pensar ao menos por alguns segundos sem esse verbo? Você já deve ter pensado várias vezes enquanto lê: “esse texto é uma m…” “esse cara que está escrevendo isso é um pretensioso” “é um b…”…éé é éé éé éé éé ´…..
Existem propostas de outras maneiras de pensar, de articular e montar nossas frases. Uma delas é o E-prime, que procura eliminar o máximo possível o verbo “é” daquilo que pensamos. Esse verbo nos tornou arrogantes e viciados em descrever o mundo com uma certeza vulgar que não cabe num universo tão amplo e relativo como o que vivemos. Nessa linguagem procura-se relativizar as coisas indicando ao nosso próprio cérebro que aquela percepção é pessoal, momentânea, fragmentada, mutável e jamais absoluta, jamais a essência de qualquer coisa que seja. Agindo dessa forma mantemos dentro de nós o frescor de espaços amplos e em perpétua metamorfose, não coagulando a energia em generalizações drásticas e definitivas, que estancam o rio da vida em preconceitos absurdos e inúteis. Toda depressão humana provem dessa atitude arbitrária de interpretações limitadas, gerando becos sem saída.
Atentos ao mal uso da língua, começamos a levar em conta que aquela percepção que temos sobre determinado fato ocorre somente em relação a nós mesmos e só naquele exato momento, no estado em que nos encontramos, com a cabeça que estamos, na temperatura daquele instante e nada mais que isso. Nossa opinião nunca é a essência de nada, mas apenas uma farpa ínfima no tempo. Não dá para afirmar nada sem também descrever sobre que ponto de vista aquilo está sendo afirmado. À partir dessa percepção alargada, a tensão da inflexibilidade começa a se dissolver, cada momento ganha dimensões infinitas e nosso estado passa a ser o da fluidez, da ausência de gravidade (no sentido físico e do nosso humor). Não damos vereditos, estamos sempre abertos a eventos futuros ou compreensões inesperadas que virão se somar àquele incidente formando um todo cada vez mais rico e inteligível-em-fluxo, nunca em si. Cada vez mais nos damos conta de que o conjunto de fatores que precisaria ser percebido para qualificar ou determinar qualquer coisa que seja está muito além de nossa capacidade sensorial e intelectual naquele instante. Seria como tentar entender a função de uma mitocôndria, sem poder perceber que ela pertence a uma célula, que pertence a um órgão, que pertence a um organismo e etc. Você não sabe tanto quanto a sua estrutura gramatical viciada parece te indicar. Você não é onipresente para poder usar o verbo “é” com tanta certeza como faz. O seu “é” veio de uma dezena (no melhor dos casos) entre milhões de outros fatores a se considerar. Praticamos uma ciência capenga e insólita em nossas teses sobre nós, os outros e sobre o universo. Condenamos a estreiteza dos fundamentalistas, mas fazemos esse papel várias vezes ao dia sem nos darmos conta. Enquadramos pessoas, países, situações e a nós mesmos, enxergando essências onde só existem flutuações relativas, e tomamos tudo por realidade, uma realidade pobre e estática, com conseqüências terríveis para nosso desenvolvimento pessoal e nossas comunicações interpessoais.
Einstein desencadeou a percepção do relativismo na física, onde nem o tempo pode ser determinado sem levar em conta o observador. Se você diz: um trabalhador demorou seis horas para terminar um serviço, terá que especificar em que estado de inércia está afirmando isso. Um observador em movimento mais rápido em relação ao trabalhador, dirá que o tempo para concluir o serviço foi maior que um observador em movimento mais lento diria. O tempo é pessoal! Até o “tic tac” varia. Não é possível se afirmar quanto tempo se passou. Seis horas podem durar nove horas, um minuto ou um milhão de anos!!! Newton que viveu bem antes de Einstein, dizia que o tempo era um fator absoluto. Einstein o desmentiu. Tudo para Newton era linear, causa e efeito. A física quântica o desmentiu. O mundo já viveu eras de certezas prematuras inúmeras vezes, e sempre vem alguém que despedaça essas certezas. Considere o fato de que todas as suas certezas são prematuras, talvez úteis por um período de tempo, mas inúteis em outros…uma a uma serão dissolvidas pela relatividade.
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