Pronto Socorro

Por mais positiva, espiritual, especialista em livros de auto ajuda, aguerrida , vencedora,  crente em Deus, com a paz de Buda e a luz de Krishna  e tudo o mais que uma pessoa seja, existem dias em que nada mais faz sentido, em que queremos mandar tudo pro inferno. Quem dentre nós pode dizer que esses dias negros, por mais que tenhamos força de vontade e sabedoria em evitá-los, não nos abatem de vez em quando? Não chegam em fúria nos fazendo esquecer anos e anos de leituras, meditação e fé?

Se você é um guru da auto ajuda para todos os amigos e familiares, não pode demonstrar que está mal. Vai ter que sofrer escondido, abafar o pranto no travesseiro. Todos nós que nos vangloriamos de uma paz conquistada com muito afinco, de repente nos vemos no chão, tão indefesos e descrentes de tudo como o mais depressivo dos depressivos, o mais ignorante dos ignorantes. Aqueles conselhos bacanas que demos pra milhares de pessoas, não funcionam com a gente naquele momento, pelo contrário, irritam. Você quer xingar, quer dizer umas boas verdades para Deus. Você que fez tudo direito, se banhou em visualizações maravilhosas de chama violeta, rezou incontáveis vezes o terço, só faz o bem para todas as pessoas, leu todos os livros espirituais, foi a todas as palestras mais concorridas do mundo, tomou um milhão de passes naquele lugar horrível na periferia… Você que tomou o Daime, pulou sete ondinhas, acendeu vela de sete dias… Você que ficou horas e horas recitando afirmações de que você é pura prosperidade, saúde, amor e alegria… Você que invocou o arcanjo Miguel e mandou mensagem para as Plêiades… Você que entrou para a Rosa Cruz e pra Maçonaria no mesmo dia… Você que tomou banhou de sal grosso e foi na mãe de santo se benzer… Você que fez oferendas pra Ogum, Iemanjá e Oxum… Você que ficou de joelhos afirmando que aceita Jesus como seu salvador… Você que aprendeu as respirações mais exóticas e as posições mais esdrúxulas de Hatha Yoga… Você que traçou o pentagrama no chão e disse “eu sou um mago, minha vontade se cumpre agora…” Você que ficou horas a fio sem se mexer e sem se coçar meditando e cantando Ommm… Você que foi no radiestesista e aprendeu que o pêndulo diz a verdade e colou figuras estranhas nos aparelhos elétricos, Você que perguntou “sim” ou “não” pro espírito que baixou na brincadeira do copo…  Você que tomou todos os florais do livro do Doutor Bach… Você que fez o feng shui bonitinho na sua casa… Você que foi ler tarot, baralho cigano, runas, búzios e borra do café e seguiu todos os conselhos… Você que foi na vidente e ela te garantiu que você é iluminada…Você que foi no pai isso e no pai aquilo, aplicou neurolinguística e fez curso de projeção astral… Você que agiu, saiu da letargia pra ir atrás daquele príncipe, que abriu seu próprio negócio porque a sincronicidade disse que era sim pra tomar essa decisão… Você que foi naquele lugar abençoado energeticamente e se banhou no Ganges… Você que ficou dentro da pirâmide de Quéops se alinhando com Stonehenge… Você que arrasou no curso de auto-hipnotismo que deu as mãos pra quem você nem conhecia na hora da prece por paz mundial… Você que levou baforadas de cigarro do pajé e nem fez cara de nojo… Você que leu a coleção inteira do Castaneda várias vezes, que citou Paulo Coelho mesmo quando todos te gozavam… Você que aprendeu palavras sagradas em sânscrito e orou em latim… Você que fez o questionário da Cientologia do Tom Cruise, que sentiu que era chegada a hora pra entrar para a Pró Vida… Você que jejuou dias e dias pra desintoxicar seu corpo, deixar a alma falar…  Você que analisou seu mapa astral casa por casa pra se conhecer melhor e saber quando agir… Você que invocou seu anjo da guarda e conversou com seus guias… Você que disse “Eu Sou aquilo que Eu Sou” quatrilhões de vezes… Você que descobriu a cabala e a numerologia, acrescentando letras pro seu nome e colocou o Zohar na entrada da tua casa… Você que ficou sabendo que Deus criou o mundo através do hebraico, e por isso teve que aprender palavras chave para pronunciar… Você que ficou girando até ficar tonto ou em transe com os dervishes… Você que encaixou sábias parábolas sufis com perfeição e sabedoria nos problemas dos amigos… Você que fez cromoterapia e aromaterapia, acendeu incenso e sentiu-se grata por tudo que a vida te deu… Você que cuidou de cada pensamento, a cada segundo, para estar sempre emitindo bons fluídos. Você que nunca mais julgou ninguém, pois cada um sabe a dor que tem no coração… Você que era a que mais dançava nas festas, solta, desprendida, vivendo o momento completamente… Você que habita só o agora… Você que agora teve que ler tudo isso e se identificar completamente. Você fez tudo, mas só nos resta dizer a verdade: você tá na merda…(ai espiritualista não fala palavrão… mas, nessa hora, não tem como). Você canta a música “Boemia” de Nelson Gonçalves alterada: “Depressão, aqui me tens de regresso…”. Não acredito que estou aqui de novo! Depois de tudo o que fiz?

Gente, a verdade é uma só: a vida é maior que todos nós, maior que qualquer técnica, qualquer estilo de vida, que qualquer boa intenção. Por mais que alguém te venda a ilusão de que fazendo isso ou aquilo, você vai estar garantido, seguro, senhor de si e do seu destino, nada nos prepara para as noites escuras da alma, os dias negros, que sempre vêm, indiferentes a tudo que preparamos para nos proteger. Aquele mestre que sempre te parece calmo e realizado, não julgue pelas aparências. Parecer calmo e centrado é o business dele, da onde vem todo seu sustento, então desconfie e muito. Nós os “new agezinhos” da vida, fazemos nosso castelinho tão bonitinho de frente para aquele mar lindo e infinito. As colunas de sustentação do nosso castelinho são feitas de muita cabala, espiritismo, Jesus, Buda, Krishna e muitas outras promessas de proteção… julgamos que não dá pra ser mais sólido. Aí vem uma onda gigante e desfaz tudo em um segundo, como senão tivesse nada ali, como se anos de fé e trabalho não significassem nada. E ficamos com aquela cara perplexa, olhando os restos de nós mesmos e da teoria sobre a vida que construímos…

Isso significa então que a vida é totalmente indiferente, cruel? Se você prestar bem atenção vai ver que não… As dores, assim como as alegrias, vêm cheias de significados, de camadas rompidas, de novos cumes para vermos além. A vida não admite você seguro, certo de que tudo está dominado. A vida quer ensinar a segurança na insegurança… Quer você cada vez menos rígido, sem qualquer ideia pré-concebida sobre nada. Por isso ela destrói suas teorias, suas certezas… Ela vai tirando as suas bengalas uma a uma. Isso não significa que elas não te foram úteis no passado, você aprendeu algo. Mas com o tempo, você se dá conta de que eram mais ilusões dentro de outras ilusões, apenas subterfúgios pra te levar de um lado para o outro. Mas a tristeza que se abate sobre nós quando uma de nossas bengalas se quebra, pode ser uma viagem terrível à sujeira do chão, ao fundo do poço. Como ainda não sabemos como andar sem aquilo que nos sustentava, uma estação no inferno se torna inevitável, até que arrumemos uma nova maneira de nos erguer. Perder um grande amor, uma fortuna? Perder a saúde, um filho… São tantas as bases sólidas de nossa vida que podem de repente se mostrarem falíveis, que mesmo antes que isso aconteça, já vivemos no medo da terrível antecipação. Essa dor da perda é uma epifania ao contrário (explico melhor no meu livro Gaimath). Tão grandioso e extraordinário quanto um dia de glória, onde recebemos algo muito desejado de repente com grande alegria (uma epifania concreta), a epifania inversa nos infunde de trevas em um só instante, muitas vezes sem que percebamos sua chegada, e aí, a força que a pessoa precisará reunir para sair disso é de uma beleza magnífica. O universo se curva a nós pelo heroísmo de termos todas nossas sustentações derrubadas uma a uma, e ainda sim irmos atrás de viver, de renascer.  Na hora que acontece maldizemos a tudo e a todos…somos tirados do paraíso e em questão de segundos postos no inferno… parece que nada mais faz sentido. Mas ao relembrarmos mais tarde, como saímos desse espesso lodo que nos oprimia com um peso insuportável, usamos a mesma frase ao contrário: como tudo fez sentido. Estou melhor agora. É aí que com inteligência e lógica, entendemos o enredo… as coisas tornaram-se congruentes e fica claro que um universo indiferente não seria capaz de conceber esse intrincado desenlace de coisas. Mas no próximo dia escuro, você vai repetir que a vida não faz sentido… e depois saindo da escuridão, repetirá, “ah, agora entendo, a vida faz sentido…” .Esse infindável ciclo parece uma respiração, a roda da fortuna que ora nos eleva, ora nos rebaixa… Mas cada vez mais nos encaminhamos para o centro dela, e seus movimentos para cima e para baixo vão nos afetando cada vez menos.

Olha, se você está nesse momento num dia negro desses, onde só uma coisa passa pela sua cabeça – “quero sumir” -, tudo isso escrito aí em cima nem graça tem… pesou até! Você teve uma noção mais ou menos do que já fez na vida pra ser feliz no parágrafo onde desfilei todas as práticas de salvação que nos tacamos vida afora.  Tem dia que nem dá pra rir das desgraças. Bom, tenho certeza que um lado seu, bem no fundo,  riu. É curioso, mas mesmo os dias mais nebulosos, nossa mente não só aceita piadas como sem que tenhamos controle, produz algumas. O corpo tenta fazer com que você mude a linha de pensamento. Quando colocamos a mão no fogo, o corpo emite a dor imediatamente, que é pra você tirar, se afastar, para não prejudicar o organismo. Com os pensamentos dolorosos acontece a mesma coisa. O corpo está sendo prejudicado por esses pensamentos, e o sistema todo tenta fazer sua cabeça mudar a direção, pensar outra coisa. Muitos são os que afirmam que o mal de Alzheimer é causado pelo próprio corpo que como último recurso, faz com que a mente pare de pensar coisas que prejudiquem o organismo. Esquecer rancores e desilusões principalmente.

O dia de dor total é um dia de entorpecimento, de intoxicação grave. As pessoas não sabem, mas nunca estamos sóbrios. Sempre nossas emoções causam uma série de reações químicas em nosso cérebro, e é através dessa química que vemos o mundo. É correto afirmar que estamos sempre sob influência de alucinógenos. A pergunta é qual tipo você está hoje? Sóbrio mesmo só um iluminado, um São, curado de todas as ilusões, limpo de todos os entorpecentes.

É fácil reparar que é assim. Observe quando você acaba de acordar ou um dia que você dormiu pouquíssimo. Você simplesmente percebe que está de mau humor, vê tudo torto. Mas o que é esse mau humor? As frases mais banais das pessoas de repente te irritam. Até a cara da outra te irrita por nenhum motivo racional. Simplesmente você está sob o efeito de drogas diferentes, que mudam sua visão de mundo. Assim como alguém que tomou chá de cogumelos, você não está no seu habitual (seu habitual sendo somente um outro estado alucinógeno). Esse mau humor é muito interessante… Olhar o mundo através dele, ciente de que é um estado passageiro como uma bebedeira, nos faz ver que o jeito que vemos e analisamos as coisas a nossa frente é somente fruto de um estado de ânimo. E temos ânimos condicionados e perpétuos  vida a fora, restritivos, que limitam o que somos capazes de ver e entender. A depressão, por exemplo, muda as cores literalmente, diminui a sensibilidade da pele… o mundo é outro (a ciência confirmou isso).

O importante aqui no dia negro, que esse texto vai estar sempre aqui pra te lembrar, é que esse entorpecimento vais passar. Vai passar…

Você vai começar a reconectar as coisas novamente. Ver que alguma beleza se manifestará daquilo que aconteceu. Você se lembrará que a história não acabou, e que você não está vendo tudo o que está se desenrolando nesse momento  a partir daquilo que você julgou tão pavoroso. Você ainda não viu o presente precioso na mão do problema.

Você pode estar naquele momento em que todas essas frases soam escapistas, justificativas tolas para criancinhas, para poder continuar a vida e continuar se ferrando todo dia…

A vida te fodeu tanto que você está grávida de um rancor enorme… (que frase feia)

Lembra, mesmo através desse baixo astral todo que você está, que dias horríveis assim já aconteceram milhares de vezes, dias que você disse –Agora chega, não aguento mais… –, dias que pareciam definitivos em sua amargura e com cara de beco sem saída. Mas você acordou no dia seguinte melhor, viu as coisas diferentes, a química mudou…

Quando alguém está numa viagem psicodélica, é muito importante ter alguém por perto pra lembrar essa pessoa quem ela é, pra trazê-la de volta, e não deixá-la se perder em outras realidades menos substanciais . O estado de depressão total é uma viagem psicodélica em tons de cinza, em tons de dor e melancolia. É preciso que algo ou alguém nos conduza de volta; não deixa de ser uma viagem fabulosa pelo inferno. De repente você vê monstros onde havia donzelas, masmorras onde havia castelos. Tudo a nossa volta transformou-se em ameaça, em dor, em frieza. Viajar por essas terras, os nove círculos do inferno, até o mais longínquo em relação onde estávamos, nos faz sentir o gelo da região mais sem amor do universo. Esse inferno, essa região gelada, está aí, dentro de você. Muitos não entendem o que é o inferno… mas todos nós já estivemos lá, e você pode estar lendo isso de lá. Que essas palavras te tragam de volta, não para a realidade mais habitual. Você voltará de lá com mais sabedoria, o contraste te trará riquezas fantásticas, você esteve no inferno e sobreviveu. Aquilo que não te mata te fortalece, a ferida de ontem é o milagre que acontece hoje.

Como alguém numa academia que parece que não vai aguentar mais, precisa desligar a esteira, o fôlego acabou, esse texto está aqui pra te dizer continua, você não sabe o quanto pode… e aí você descobre um segundo fôlego, vindo não se sabe de onde…

Não vou te salvar desse dia negro dizendo “Jesus te ama”. Não. Não sei nada sobre isso. O que sei é que podemos pensar juntos com lógica e inteligência, estatística e intuição, que esse dia passará, que você verá novas oportunidades surgirem a partir dele. Sabemos disso porque temos memória, sabemos que sempre nos apressamos em batizar as coisas como boas ou ruins sem ainda termos um contexto mais amplo para avaliar. Desse raciocínio feito aqui entre nós, chegamos a um veredito de que sua dor é um passo para um novo estado de coisas. Que cada vez que você sai de uma dessas, você olha pra trás e agradece. Você nunca perde coisas, mais se livra do que não era mais pra você. Você é maior que essa dor, que esse problema. Na eternidade da sua vida e no infinito das estrelas, o dia de hoje é um milésimo de um grão de areia. Mas ele sempre fará parte de você… a beleza da dor faz parte da beleza de estar vivo, de poder sentir todas as coisas tão intensamente. Você não é um psicopata, você não é inanimado, você não é perfeito… seu sangue está correndo, você está quente, você está vivo…

Vamos juntos tirar você calmamente desse dia negro, e analisar o que ele trouxe… Vamos melhorar esse texto sempre que possível, para que ele nos resgate sãos e salvos da melhor maneira possível. Todos nós vamos nos esquecer de tudo isso que está escrito aqui quando esse dia estiver em nós, isso é uma certeza. Por isso, que nos lembremos uns aos outros dele quando um de nós estiver entorpecido. Que assim seja.