Alas for those that never sing,
But die with all their music in them!
Weep for the voiceless, who have known
The cross without the crown of glory!
Oliver Wendell Holmes, 1858
Q
uando Chris nasceu, a médica que o retirou das entranhas de sua mãe chorou copiosamente de horror. Ela nunca havia tido a experiência de realizar o parto de uma aberração. Uma coisa é retirar um bebê meigo e perfeito, de pele macia e rosto angelical, ainda que inchado e um tanto sujo de sangue, coisa que ela fazia quase que diariamente. Outra bem diferente era tirar um recém-nascido assim…
Estamos em 1971. Ninguém ainda faz ultrassonografias. Tirar um bebê da barriga de uma mãe é como abrir uma caixa completamente embalada sem saber nada sobre o que está ali dentro. Essa médica nunca mais faria um parto com a tranquilidade de antes. Sentiu-se num filme macabro, num mundo que não imaginava realmente existir, que só via em livros de medicina exóticos que não pareciam falar de coisas que acontecem de fato.
Quando a mãe viu seu filho no colo da enfermeira começou a gritar a plenos pulmões. A frase que mais saia de sua boca apavorada era cruel demais para ser verdade:
-Mata isso, mata isso… Tira da minha frente, tira agora!!! Ahhhh…
Mas ela realmente queria o infanticídio. Não foi só um choque momentâneo. Dias após o parto ela ainda afirmava que deviam matar aquela “criatura”, que ela jamais levaria “aquilo” para casa.
O marido ao ver a reação da esposa tomou uma atitude radical lá mesmo no hospital:
-Eu quero me divorciar…
No que sua mulher de pronto respondeu:
-Se você pretende levar essa coisa para casa você pode ter certeza que eu mais do que ninguém nesse mundo quer o divórcio.
-Ótimo então. Ele é meu filho, se eu ouvir você chamá-lo mais uma vez de “essa coisa” eu meto a mão na sua cara. Você jamais o verá novamente.
-Graças a Deus…
-Graças a Deus digo eu! Deus me mandou um sinal… O primeiro ato abençoado de meu filho foi mostrar quem você é, com o que eu estava casado.
-Vai se catar. Você deveria defender sua mulher, não essa coisa… Se ele fosse sacrificado era uma benção para ele e para todos nós.
O marido, como prometido, virou-lhe um belo tapa na cara. Não havia instinto materno nenhum ali. Sua esposa começou a gritar e a chamar os médicos indicando a agressão. Foi a última vez que escutou sua voz. Nunca mais ele o bebê a viram. Ela pegou suas coisas do apartamento que moravam e sumiu… Nem todo mundo tem a força necessária para assumir e criar uma aberração. Será que devemos julgar?
O pai teve que esperar dois meses para tirar Chris do hospital. Os médicos achavam que ele morreria sem auxílio de aparelhos e medicação constante, mas estavam errados. Ele estava bem do jeito que era.
Ah sim, a descrição. Chris tinha um rosto muito simples, para alguns pavoroso, para outros agressivo e brutal. Mas para o seleto grupo de gente menos impressionável e condicionada, não sensivelzinha demais, sem necessidade afobada de adjetivar e rotular, o rosto era um belo enigma. Havia apenas um enorme buraco na face de Chris. Não havia nariz, não havia boca, não havia olhos. Um buraco profundo e escuro que soltava e sugava ar, sua respiração. Servia também para comer. O pai despejava alimentos pelo buraco. Os médicos descobriram que era ligado normalmente ao sistema digestivo. Não havia dentes, o que é normal para um recém-nascido, portanto só papinhas eram atiradas ali. Só que nunca teria dentes, não havia uma boca…
Se você olhasse no buraco de baixo para cima de um certo ângulo, era possível ver o cérebro de Chris, que segundo os médicos era perfeito. De cima para baixo dava para ver apenas o caminho da comida no pescoço e algumas tripas mais brilhantes. Esôfago? O pai não era bom de anatomia, mas tentava entender o que via. Debruçava-se sobre o buraco todos os dias tentando apreender o filho o máximo possível. Falava com ele dentro do buraco, gostava como o oco da cabeça envolvia sua voz e a amplificava criando ecos que pareciam descer e subir infinitamente pelo corpo de Chris. Punha a boca no buraco e falava alto “Chris”, e depois colocava o ouvido na barriga para escutar a própria voz ressoando sem parar lá dentro.
Com um ano de idade o pai viu que havia dentes por dentro da cabeça de Chris. Olhando dentro do buraco, no fundo para baixo, dava para ver uma espécie de boca que ficava entre o pescoço e a cabeça. Boca é exagero, era mais um rasgo dentificado que abria e fechava. Foi um dia feliz. O filho iria poder comer coisas sólidas, mastigar… Infelizmente não havia língua, claro. O filho jamais falaria ou produziria som. Quer dizer, havia o reconfortante som da respiração. Uma respiração com um som belíssimo, de um grave imponente. Lembrava a de um touro, mas ainda mais grave. O pai era muito musical, ligado em sons. E aquele era um som poderoso… Seu filho era lindo aos seus olhos e aos seus ouvidos.
Cinco anos depois, o pai ainda investigava o filho todos os dias. O menino o abraçava forte quando ele falava “Chris” no buraco. Era sempre emocionante, momentos que fazia tudo valer a pena. Quando estava com fome, batia as mãozinhas. Às vezes era capetinha fazendo a comida subir pelo buraco e esparramando tudo pelo chão. O pai sabia que não era um vômito normal, era forçado. Era difícil saber se era um nervosismo, uma brincadeira ou apenas não tinha gostado do que comia. A comunicação era o maior problema. Muitas vezes ficava claro que era um ataque nervoso. Parecia aflito, ansioso, batia as mãos e os pés e fazia o ar de seu buraco sair e entrar com violência. Podia ser desespero por não ser capaz de se expressar direito? Como saber?
O pai não conseguia arrumar babás e nem manter relacionamentos estáveis. Todas se assustavam demais com o aspecto de Chris. Apenas a avó, sua mãe, sempre o auxiliou muito na criação e amou o neto desde o começo. Revezavam nos cuidados com o menino. A avó assumia quando ele precisava trabalhar.
Era sempre de triturar o coração para um pai ver as pessoas virando o rosto com nojo, ou tapando o olhar dos filhos quando passava com Chris em lugares públicos. Ainda pior era a turma de sádicos curiosos que se formava em volta para espiar a “aberração” de perto. Por essas e por outras evitava ao máximo sair do apartamento onde moravam. Ainda bem que o menino mesmo não sabia dessa aversão aflitiva ou a curiosidade psicopata das pessoas, que eram os únicos dois sentimentos que o resto do mundo lhe devotava.
Os ouvidos de Chris eram perfeitos. Era a única coisa normal que tinha na cabeça. Por isso, o pai sempre colocou música para ele ouvir. Era ótimo para acalmar as crises nervosas. Ele respondia muito bem à música e até marcava o tempo com as mãos e os pés. O som entrava por seu buraco também, parecia uma coisa até mais direta… Por isso o pai nunca abandonou o hábito de falar com o filho pondo a boca ali, apesar de as orelhas ouvirem também perfeitamente. Mas a ressonância no buraco era especial.
Era óbvio que respondia favoravelmente a músicas mais fortes, gostava da parte mais pesada do catálogo de discos do pai, coisas como Black Sabbath, Led Zeppelin, Deep Purple… Ao entrar pelo buraco, o som das guitarras distorcidas fazia tudo lá dentro reverberar e a pequena criança parecia viver uma catarse muito particular.
Quando Chris tinha seis anos, aconteceu uma coisa fascinante. Talvez. O pai disse “Chris” no buraco e foi como de costume encostar o ouvido na barriga para ouvir os ecos subindo e descendo no corpo do menino. Mas ouviu, ou pensou ouvir, entremeado ao som “Chris”, o riff de “Iron Man” do Black Sabbath. Estava extremamente baixo e era um som frágil que nada tinha a ver com guitarra ou algum instrumento de fato, mas apenas um quase inaudível sopro soando debilmente as notas certas no ritmo da música. A princípio o pai achou que foi o cérebro dele mesmo que pregou uma peça, que eram aquelas melodias que se repetem em nossa cabeça sem parar, às vezes tão claras que até parece que vieram de fora. Considerou também que talvez fosse um eco ainda ativo no corpo do menino, de um dia que ouviram “Iron Man”, pois ele punha essa música para tocar com frequência. Mas ecos não duram tanto assim, nem na super caixa acústica que era o corpo de Chris. Naquele dia em especial não tinham ouvido “Iron Man”…
Aquilo ficou martelando em sua cabeça. E se Chris estivesse deliberadamente produzindo aquele som? Usando ventilações internas e órgãos de seu corpo para comprimir e expandir o ar formando as notas e os ritmos do riff? Seu filho era tão especial, sabe-se lá o que era possível ou impossível para ele. Um assobio interno?
Claro, começou a por o ouvido na barriga do menino muito mais vezes por dia. Não ouvia nada, mas não parava de tentar. Um dia achou que ouviu de relance o riff de “Smoke on the Water” do Deep Purple. E assim foram passando os meses e hora ou outra ele achava que tinha escutado um determinado riff. Cansou da experiência solitária e pôs a avó na barriga do neto para tentar ouvir também, correndo o risco de dar uma de maluco. Mas ela era tão pouco familiarizada com riffs que não ia ser possível que reconhecesse nada. E era isso que Chris curtia, e portanto só isso que devia “assobiar” lá dentro. Quando ela disse que achou que tinha ouvido uma valsa de Strauss em meio aos movimentos dos sucos gástricos do menino, o pai definitivamente desanimou. Ficou claro o que estava acontecendo. Era a imaginação dele que vinha pregando peças. Quando pediu que a mãe pescasse alguma melodia lá dentro ela ficou sugestionada e acabou por ouvir algo que ela mesma conhecia e projetou no menino algo que ocorria só em sua cabeça. Chris jamais “tocaria” uma valsa de Strauss. Ele nunca tinha ouvido isso. Que pena. Tudo aquilo tinha sido causado por uma vontade louca de se comunicar com seu filho.
Algum tempo depois, num determinado dia, achou que Chris estava muito quieto, sem mexer os braços e pernas e com uma respiração um tanto lenta. Pôs a mão na testa do menino e sentiu que estava bem quente. Assustou-se e foi logo pegar um termômetro, que indicou alarmantes 42 graus de febre. Correu aflito para o médico.
Chegando lá nada foi descoberto. O menino estava saudável e a febre desaparecera totalmente. A temperatura estava normal em seus 37 graus e meio. O médico duvidou que Chris estivesse com 42 de febre há uma hora, pois nessa hipertemia toda o corpo estaria literalmente perto de cozinhar e o funcionamento dos órgãos e todo o metabolismo comprometidos. O menino estaria próximo ou já em coma, com poucas possibilidades de ser salvo.
A culpa então era do termômetro que marcara errado. Mas o pai sentira a cabeça fervendo. Mas que bom que tinha sido só um susto.
No entanto, no dia seguinte aconteceu novamente, a cabeça do menino estava pavorosamente quente. O pai não quis correr para o médico para novamente ver sua cara incrédula. Correu o risco, achou que aquilo ia passar. Mas ficou constantemente com a mão em sua testa, tentando perceber o que era aquilo. Seu filho não era nada normal, era uma criatura a ser descoberta ano após ano, dia após dia, de minuto em minuto.
Pousou a mão no lado esquerdo e depois no direito da cabeça do filho para ver se existia um foco específico de calor. Encostou a própria bochecha de cada lado para sentir com mais sutileza. Achou que percebeu algo estranho nisso, não uma variação de calor, pois tudo estava bem quente, uniformemente, mas parecia que a cabeça emitia uma sutil vibração que era diferente em cada lado. Ele já havia sentido essa pequena vibração várias vezes no filho. Julgou ser parte normal de seu metabolismo, talvez devido à cabeça ser aberta e tal. Mas pela primeira vez pôde sentir na palma de sua mão e em seu próprio rosto que um lado vibrava diferente do outro.
Decidiu ser ainda mais sutil na investigação. Colocou um só dedo, a pontinha, bem de leve, em certo ponto da cabeça do menino e foi mudando devagar de posição. Ficou estupefato. Em cada pequena deslocada de dedo pela cabeça do filho ele sentia uma vibração diferente. Era inegável. Variava de intensidade. Mas cada ponto específico emitia só um tipo, sempre a mesma vibração. Mas o seguinte era ou mais ou menos intenso.
“O que diabos é isso meu Deus?”, passou a se perguntar o pai obsessivamente… Mais tarde, quando a cabeça do menino esfriou, não sentiu mais nenhuma vibração sendo emitida. A respiração ficara mais forte novamente. Aquela quentura não era febre. Fez bem em não levar o filho para o pronto socorro novamente. Certas coisas devem ser resolvidas e descobertas pela sensibilidade de quem ama e não um qualquer que está apenas trabalhando, desempenhando sua profissão… Por mais diplomas e sabedoria que esse alguém tenha. A proximidade de pai e filho, sentimental e espiritual, mais a afinidade de DNA, traria as respostas necessárias. Ele apostava nisso agora. Chris era único e era seu filho. E como amava aquele menino. A falta de mãe (e do resto do mundo) os unira de uma maneira infinitamente intensa… Faria tudo que estivesse ao seu alcance para tornar a vida daquela criança a mais agradável e expressiva possível.
A cabeça quente agora acontecia mais vezes ao dia e era sempre motivo de concentração total do pai para que algo mais se descobrisse ali. Vibração e alta temperatura, as duas coisas estavam evidentemente correlacionadas. E mais uma aparente pista surgiu. Isso acontecia muito enquanto ouviam música, durante e/ou logo depois. O pai chegou a ficar chateado achando que talvez o menino não estivesse mais gostando de ouvir e a cabeça quente era de irritação. Mas não era nada disso. Quando começou a não mais colocar os costumeiros LPs de hard rock, para testar se era isso que o irritava, aí sim ele se irritou de verdade. Começou a bater as mãos freneticamente, como quando pedia comida. Mas era fome de música mesmo… Então aquela calma e quentura da cabeça tinham a ver com a música. Mas era algo positivo? Quantos mistérios.
Infelizmente depois de um tempo, logo depois que ocorriam as sessões de cabeça quente e vibrações, Chris começou a ficar também tenebrosamente nervoso. Parecia desesperado e começava a bater em sua própria cabeça com as mãos, e algumas vezes batia a cabeça mesmo diretamente na parede ou no chão, com assustadora violência. Parecia frustrado com algo? Ou era dor? O pai corria para abraçá-lo e falar coisas carinhosas em seu buraco, até que o ataque parasse. Aquilo tudo estava cada vez mais confuso e indecifrável.
Apesar de os médicos sempre dizerem que o cérebro de Chris era normal, estava claro que não era. Lógico, a falta da visão e da fala prejudicaram e muito a comunicação e o desenvolvimento do menino, mas não era só isso. A professora contratada para ensinar Chris, especialista em crianças especiais, não conseguiu fazer com que ele se comunicasse melhor. A única coisa que mexia com o menino era a música. Essa professora tentou de todos os jeitos fazer com que Chris aprendesse a se comunicar com gestos, aprendendo a visualizar internamente as coisas pelo tato, por ele se cego, tocando objetos, combinando o som das palavras à sensibilidade de suas mãos. Mas nada o animava e nada disso parece que fez sentido para ele. Por isso que o pai tinha que descobrir tudo quase que sozinho. Seu filho pouco ajudava. Até crianças surdas/mudas e cegas de nascença, o caso mais difícil de iniciar uma comunicação com o mundo externo, desenvolviam-se melhor que Chris.
Porém, estava longe de ser um autista. Muito emotivo, abraçava o pai a toda hora, e quando a avó chegava fazia muita festa com os braços e as pernas, uma dança especial dele de pura alegria. Amava ouvir essas duas pessoas que o amavam tanto falando em seu buraco. E abraçar era toda a comunicação que tinha, por isso fazia o tempo todo. Sabia bem como usar os bracinhos para envolver e apertar. A avó costumava dizer:
-Como é gostoso esse abraço meu neto querido. É um abraço que me faz esquecer de tudo e querer ficar aqui para sempre.
Não sabiam o que ele entendia dessas palavras. Provavelmente nada, mas o tom de carinho era o que importava. E com certeza reconhecia cada timbre de voz e sentia um amor infinito pela avó e pelo pai, demonstrando seu sentimento de forma um pouco diferente para cada um, personalizado. Era mais pegajoso e delicado com a avó, sempre arrumando um jeito de abraçá-la pondo a cabeça em seu colo ao mesmo tempo. Com o pai dava abraços mais fortes e movimentados, cheios de pulos e apertões, muito festivos. E além dessa querida família de dois, havia as amadas músicas que ele não podia viver sem que eram as outras portas de contato com o mundo exterior que Chris tinha… Um pai, uma avó e o rock.
Essa professora de crianças especiais que uma época frequentou a casa e tratou de Chris, sempre o fez com cara de horror e aflição. Não se tornou em absoluto alguém especial para o menino. Ele era indiferente a ela, e ela nunca chegou a ter carinho por ele, mas só vontade de terminar seu trabalho logo, pegar o dinheiro e ir embora.
Mas foi no dia 17 de outubro de 1979 que tudo mudou, ou assim escreveu o pai em seu diário. Chris estava com oito anos. Ao colocar os dedos na cabeça do menino, que se encontrava naquele momento especial de quentura, “febril”, foi possível sentir um ritmo nas vibrações. O pai teve a ideia de colocar todos os dedos de sua mão direita e esquerda na cabeça ao mesmo tempo, cada um em um ponto específico. E pôde sentir uma dança de vibrações, isto é, ora uma ou outra ficava mais forte, às vezes duas ao mesmo tempo, e havia um padrão específico. Um padrão! Que parava e continuava… Mas não é só isso. Esse padrão específico parecia ser da música “Iron Man” do Black Sabbath. Não havia som de notas, mas dava para perceber pelos intervalos entre as vibrações, e as durações de cada uma, que era o padrão rítmico dessa música. A percepção seguinte foi imediata: e se essas vibrações são notas? Cada uma corresponde a um “dó” ou a um “fá”, e essa variação que está ocorrendo são as notas exatas de “Iron Man” junto com o ritmo? Será?
O pai é que agora estava pegando fogo! Seu filho estava tocando! Só podia ser isso.
Chegou a dar um violão uma época para Chris para ver se ele entendia o instrumento e imitava os sons que ouvia dos LPs que tanto amava, afinal seus ouvidos e mãos eram perfeitas. Mas mesmo colocando milhares de vezes o violão em seu colo e pegando forçadamente suas pequenas mãos para tentar mostrar como se aperta as cordas nas casas para escolher as notas, e demonstrar como se toca alguns riffs, o menino nunca entendeu e nunca reagiu ao instrumento.
O violão estava lá jogado num canto da sala e nunca mais fora usado depois da milésima tentativa de animar Chris com ele. Pelo menos tentou…
Mas agora isso! Aquelas vibrações na cabeça! Pulsos determinados no ritmo de uma música conhecida. Restava saber se as notas correspondiam também.
Enquanto a vibração ainda estava ativa na cabeça, lembrou de por o ouvido na barriga do filho, meio de reflexo e intuição, e aí as coisas se uniram, se encaixaram, se confirmaram e fizeram sentido. Aquele sonzinho débil quase inaudível estava lá soando nas entranhas: “Iron Man”, não havia dúvida. O “assobio” interno não era imaginação, estava realmente lá. As notas corretas… Vinham das vibrações!
A excitação eufórica do pai foi interrompida com Chris nervoso batendo de novo em sua cabeça.
-Calma filho… O que acontece que você fica assim nervoso? Você estava tocando! Eu agora sei. Perdoe a burrice, a lerdeza de seu pai em perceber. Você decorou a música filho, seu pai está maravilhado, orgulhoso, emocionado.
Conseguiu mais uma vez acalmar o menino. Música, vibração, cabeça quente, prazer e frustração… Tudo isso estava lá sendo emitido por Chris, e o mistério ainda permanecia. Qual é a peça que faltava para entender a situação? Música parecia alegria e frustração ao mesmo tempo para ele.
Depois desse dia o pai passou a se deliciar sempre em tentar decifrar na cabeça de Chris que música ele estava “tocando”. Tentava primeiro só com o ritmo das vibrações com os dedos das mãos pousados nos pontos de emissão e se não conseguisse adivinhar encostava o ouvido na barriga do filho para tentar captar o fiapo de som que emitia lá no fundo. Centenas de riffs diferentes apareciam… Que prazer era tomar conhecimento de quanta coisa o filho decorara, aprendera. O momento lúdico era brutalmente encerrado toda vez pelo já esperado nervosismo e os socos na cabeça, a aflição não compreendida que se seguia a essas sessões. Faltava entender mais sobre seu amado filho.
Agora a coisa se embrenha por um caminho bizarro e perigoso. Depois de uma nova sessão de vibrações, cabeça febril e débeis riffs de som microscópico, mais uma vez culminando em nervosismo desesperado controlado por abraços e palavras gentis, o pai ficou absorto em pensamentos distantes no sofá da sala. O olhar perdido um tanto desolado acabou por acaso se demorando um pouco mais sobre o violão esquecido no fundo da sala. Mais precisamente no buraco do violão, que começou, de repente, a sugar o pensamento do pai como um buraco negro do qual nada escapa. O momento “Eureka”, “A-ha”, aquele átimo explosivo de entender algo antes incompreensível se despejou sobre ele como uma bomba atômica de infinitos megatons.
Dirigiu-se ao instrumento empoeirado e arrancou com absurda violência uma de suas cordas, puxando-a com o punho fechado e arrebentando tudo que a prendia. O entusiasmo alucinado não permitiria que sentasse calmamente e retirasse a corda pelas vias normais, afrouxando com a tarracha.
Com o metálico filamento em mãos dirigiu-se prontamente rumo à cabeça de Chris. Pressionou com um dedo uma das pontas da corda no topo da cabeça e a outra no queixo, deixando o vasto e profundo buraco no meio. Agora era fazer o menino entender. A ideia era que a vibração na cabeça faria por simpatia harmônica a corda vibrar, valendo-se ainda do oco da cabeça para amplificar esse som… Maluquice? Pode ser, mas era talvez um insight valioso.
Chris não entendeu, claro. Era preciso esperar o momento espontâneo de uma vibração para por a corda em cima. Chris nem sabia o que era uma corda e que o pai a estava pondo em sua cabeça.
A oportunidade veio logo, algumas horas depois. A cabeça quente indicou que o menino estava tocando. O pai mais uma vez colocou a corda no lugar… E quando a vibração aconteceu naquele ponto específico onde ele esticava a corda, de topo da cabeça a queixo, ouviu uma nota! Caiu pra trás não contendo a emoção. A nota saiu abafada e feia como se vinda de um arame farpado e não de um instrumento. Mas é claro, era porque o som jamais sairia bom com dedos segurando a corda, e sem a tensão ideal que a estica. Ainda sim, aquela nota abafada foi a coisa mais linda que aquele pai ouvira em toda sua vida. Era como ouvir o primeiro choro do filho quando nasce. E uma coisa ainda mais linda aconteceu junto: Chris contraiu o rosto quando ouviu a nota. Era sua feição de curiosidade despertada, que fazia raríssimas vezes, geralmente para alguns LPs que gostava mais. Colocou as mãos na cabeça, querendo sentir o que tinha soado ali… Bonito e empolgante demais tudo aquilo.
Contudo, mais uma vez depois da empolgação veio a frieza dos fatos. E daí que colocando uma corda na cabeça dele ela soa? Para que prestaria ficar segurando uma corda para ficar ouvindo uma notinha abafada sendo produzida? Para ter mais notas colocaria nove pessoas, cada uma segurando uma corda na cabeça do menino? Talvez um riff completo saísse disso, mas era impraticável e sem sentido. Que tal furar a cabeça toda do filho e encher de tarrachas de guitarra para que segurem as cordas com a tensão ideal e produzam um som cristalino? Absurdo pensamento de um psicopata! Só rindo, não fosse a tristeza da coisa. Todas as opções eram cretinas. Não tinha servido de nada aquela descoberta…
O pai foi para a cama naquela noite com a tristeza proporcional à alegria que obtivera ao escutar o som da corda. “Eureka” imbecil, concluiu.
Mas uma parte de toda essa loucura não saía de sua cabeça, por incrível que possa parecer. Ele, um homem normal, apaixonado pelo filho, não conseguia escapar da última bobagem que pensara: “Que tal furar a cabeça toda dele e encher de tarrachas de guitarra para que segurem as cordas com a tensão ideal e produzam um som cristalino?”…
Não pode ser que estava considerando essa possibilidade a sério.
Os dias se seguiram e as crises nervosas do filho pioraram muito. Chris colocava as mãos onde a corda tinha estado, querendo senti-la novamente, talvez querendo ouvir o som. Fazia muita força em suas vibrações, muito mais do que antes, fazendo com que a cabeça ficasse vermelha de sangue e quente em demasia. Agora o nervosismo estava correlacionado a isso, a tentar fazer com que a cabeça fizesse algo soar, que suas vibrações fossem audíveis.
O pai agora não sabia se tinha sido péssimo ter colocado a corda lá uma vez e despertado essa vontade no filho ou se justamente tinha sido sempre esse o motivo de toda a angústia de antes, não conseguir se expressar devidamente. Ele apenas provou um pouco do que sempre tinha desejado e agora precisava de mais?
“Que tal furar a cabeça toda dele e encher de tarrachas de guitarra para que segurem as cordas com a tensão ideal e produzam um som cristalino?”.
Ele estava com medo, muito medo, porque esse pensamento não o abandonava. Essa loucura parecia a coisa certa a se fazer… Mas o que podia ser mais errado do que isso?
Começou a colocar sempre, com as mãos mesmo, aquela única corda que podia segurar para que Chris ouvisse o som. Ele começou a vibrar só esse ponto porque era o único que soava. Fez uma sessão um dia com a avó. Cada um segurou uma corda diferente em um ponto diferente da cabeça e Chris pôde brincar com duas notas. A avó se deslumbrou ao ver e ouvir aquilo tudo. As notas eram feias e desafinadas, mas havia um pulsar rítmico lúdico ali que contagiava.
-Parabéns meu neto querido! Isso é lindo demais…
O pai então explicou o “pensamento esquizofrênico” para a mãe. Ela assustou-se a princípio, mas depois de ver o neto fazendo aquilo a coisa não era tão absurda assim.
Duas cabeças pensam melhor que uma. Decidiram que se fossem partir para a ação, seriam necessárias no mínimo mais duas pessoas para ajudar: um cirurgião e um luthier. É claro que eles sozinhos não poderiam sair furando a cabeça de Chris. Era preciso um projeto preciso do que fazer e depois prover as condições ideais para executá-lo sem perigo para a criança.
Tinham que calcular tudo. Onde por cada tarracha, a que distância uma da outra, onde por a base no queixo que prenderia a outra ponta das cordas. Qual a tensão que um crânio suporta? Qual a tarracha ideal e como deve ser presa para que não cause rachaduras? O prego da tarracha pode penetrar no cérebro? A que profundidade? Quantas cordas seria o ideal? A que tensão cada uma? Como deveria ser o procedimento cirúrgico para colocar tudo isso permanentemente na cabeça de Chris? Anestesia geral ou local? Qual o melhor material para não haver rejeição do corpo?
Nada disso eram coisas que podiam ser respondidas por leigos como eles. Precisavam que esses dois profissionais, luthier e cirurgião, trabalhassem em conjunto.
Como convencê-los de que aquilo era o correto a se fazer? Colocar tarrachas de guitarra na cabeça de um menino de oito anos? Essa era a parte sinistra, delicada e enormemente complicada que cabia ao pai e avó: de serem convincentes e claros o bastante para não parecerem dois psicopatas.
Desenharam o projeto todo, com detalhes precisos da cabeça, onde ficariam as cordas e tudo o mais, e principalmente o porquê de quererem aquilo. Explicaram com um texto cauteloso e eloquente, que as vibrações clamavam por uma expressão de fato, precisavam fazer algo soar. Incluíram fotos de Chris, seu histórico. Na hora do encontro com os dois profissionais, pretendiam mostrar como as vibrações agem na corda.
Marcaram uma consulta com o médico habitual de Chris para iniciar as conversas e obter alguns conselhos.
O doutor ouviu as explicações totalmente calado, um silêncio ensurdecedor. No final das explicações da avó e do pai pediu apenas para ficar com o projeto posto no papel para poder analisar melhor. Daria seu parecer depois de alguns dias.
No dia seguinte a campainha do apartamento de Chris e do pai soou inesperadamente logo às oito da manhã. Eram dois policiais que haviam recebido uma denúncia de que algo terrível poderia ser feito a uma criança. “Maldito médico”, pensou o pai.
Após duas horas tentando persuadir os policiais dizendo que tinha sido só uma ideia maluca que já a tinha abandonado, pois não perderia tempo tentando convencer policiais xucros da correção de sua intenção, o pai conseguiu momentaneamente livrar-se dos dois, que avisaram que ficariam por perto e que ele estava devidamente avisado para que não tentasse nada daquilo que falara ao médico em seu filho. O pai disse que foi só uma consulta a um especialista para saber se era ou não absurda a ideia que teve. Se o médico achou imprudente, ele jamais faria. Mas os policiais avisaram que o processo estava agora correndo na justiça e um juiz decidiria o que fazer depois do ocorrido. Não relevariam o “bizarro” plano narrado ao médico no dia anterior, pois só de ter pensado sobre isso já era doente e criminoso. A prova da intenção de crime, o projeto, estava de posse da justiça, com a caligrafia dele. Estava avisado.
Assim que os dois saíram, ele apressou-se em fazer uma mala. Precisava levar Chris dali. Estava muito bravo. O mundo não entenderia seu filho jamais. Sempre tudo que vinha de fora era agressivo, desumano, sem paciência e carinho de querer compreender. Maldito médico traidor. Cabeça fechada desses imbecis… Isso deu ainda mais vontade de fazer o que julgava correto. Era assunto de família, para ser resolvido entre ele e o filho. Não envolveria mais a avó para não colocá-la em risco.
Leave A Comment