Quando Mel nasceu o médico foi muito precipitado em dizer:
– O bebê nasceu sem cabeça!!!
O pai ouviu de longe a revelação e começou a chorar. Sua filha nascera morta, concluiu.
Mas não. O bebê respirava normalmente e ninguém entendia como. Acima do pescoço não havia nada, mas o coração batia, o sangue corria, os braços e pernas mexiam, sua pele era saudável… Estávamos no ano de 1967, as ultrassonografias não existiam e a retirada do bebê do corpo da mãe era sempre uma surpresa genética. Nesse caso assustadora. Nos dias de hoje, com a possibilidade de examinar todo o desenvolvimento do feto ainda na barriga, com certeza essa gravidez teria sido interrompida logo no começo.
Passados alguns dias na UTI do hospital, os médicos ficaram atônitos com um osso que se projetava do meio das costas do bebê e outros dois que cresciam do lado direito e esquerdo de seu pescoço, todos resolutamente caminhando para cima. Aumentavam de comprimento de forma vertiginosa. Foi no quinto dia que uma fina e larga pele branca se expandiu para os lados, em cima desses ossos que agora pareciam servir para sustentá-la. Os novos ossos eram, como todos os outros, revestidos de pele, músculos e veias. Seguravam e amparavam essa coisa branca que parecia uma cabeça retangular gigante, praticamente de duas dimensões com sua irrisória profundidade. Uma coisa horrível de se ver, vazia e triste.
Os médicos tentaram aliviar o casal dizendo que nesse caso de óbvia anencefalia do recém nascido, a eutanásia era um direito garantido por lei. Eles não precisavam estragar suas vidas para tentar cuidar de algo que jamais se desenvolveria saudavelmente. No melhor dos cenários, o tempo de vida seria curto. No pior, seria uma vida vegetativa longa que exigiria constante abnegação dos responsáveis, sem recompensa emocional alguma.
O casal levou sua estranha bebê para casa. Não escutaram os médicos… O corpo era perfeito e se mexia normalmente. Aquelas mãozinhas lindas e vivas já eram o suficiente para emocioná-los e fazer dela algo plenamente amável. Mas ela não emitia som, não tinha boca, olhos, nariz, nada. Era um mistério como respirava e estava viva. Colocavam-na no soro constantemente para alimentá-la e a abraçavam muito para transmitir carinho. Isso era tudo o que dava para fazer…
Demorou um mês para o pai e a mãe perceberem uma coisa. Eles ficavam horas olhando para o bebê tentando entender o que ele era. Então deu um estalo na cabeça da mãe:
-Essa coisa em cima do pescoço dela não parece uma tela? Esses ossos não parecem um cavalete?
O pai concordou. Hoje parece óbvio para quem já conhece Melina, mas na época, a mãe foi muito perspicaz em perceber isso. Nem o pai nem os médicos haviam notado o que aquela cabeça parecia ser.
Apesar disso, eles nada fizeram. Não tiveram nenhuma ideia a mais. Parecia uma tela de pintar, verdade. Sim, e daí?
Foi com quase seis meses de idade que o pai, meio de saco cheio daquela filha inexpressiva, (sem sons, sem olhos, sem choro, sem nada) pegou um lápis de pintar os olhos, um rímel da esposa, e rabiscou uma boca naquele branco infinito e mórbido da tela-cabeça do bebê. Quase morreu do coração.
Um choro ensurdecedor de criança tomou conta da sala. A mãe que estava no banheiro veio correndo, o coração na boca. O pai estava em estado de choque. A boquinha de lápis preto que ele pintara, mexia-se sozinha e formava outras posições muito além do que ele tinha feito. Viu até garganta e língua lá dentro.
Os pais abraçaram-se emocionados. As palavras saiam enroladas em meio ao choro enquanto ele explicava a ela o que fizera para desencadear aquilo. A mãe então pegou sua filhinha no colo porque, graças a Deus, ela não parava de chorar. E levou outro susto. A menina ao sentir a proximidade com a mãe procurou seu peito com desespero. A mãe abriu a camisa e até hoje emociona-se ao lembrar da primeira vez que sua amada filhinha mamou nela. A dor da sugada vigorosa foi puro deleite, sem trocadilho. Melina parecia ter nascido naquele momento.
Não quiseram contar aos médicos. Julgaram que eles não entendiam nada de sua filha. Eles é que descobririam tudo sobre ela. E além do mais, não queriam que Melina virasse uma curiosidade científica para o mundo.
A menina era só boca. A mãe então, seguindo a lógica da coisa, desenhou de improviso, completando o rosto, dois olhos e um nariz. Mais uma alegria inesquecível… Ela e sua filha puderam finalmente se ver. Foi motivo para mais outro rio de lágrimas. “Meu Deus, os olhos dela estavam vendo, vivos, alertas…”. E Melina então sorriu! Viu também que sua mãe tinha corpo, cabeça, olhos e um sorriso acolhedor de um amor infinito. Ela que devia estar vivendo num breu absoluto, sem sons, sem luz, sem forma.
Melina agora tinha uma cabeça funcional. Mas era um rosto muito mal desenhado. Claro, nem mãe nem pai eram artistas e nunca haviam aprendido a desenhar na vida, nem minimamente. O rosto era só uns rabiscos pretos, parecidos com um desenho de criança. Tinham que melhorar, era sua filha que estava ali. O DNA não dera tudo automaticamente, uma parte cabia a eles completar. A vida e suas surpresas bombásticas. Estava literalmente nas mãos deles terminar de onde a natureza parou. Ou deixou em aberto, melhor dizendo…
Mesmo assim, Melina expressava-se muito bem. Chorava, ria, mamava e olhava tudo ao seu redor. Mesmo com o rosto infinitamente tosco… Ela transpirava muito na cabeça e o desenho ia se desfazendo. Era sempre uma oportunidade de refazer melhor, desenhar com mais primor… Mas faltava habilidade…
O pai matriculou-se num curso de pintura. Com o tempo foi fazendo rostos cada vez mais bonitos para Melina. Ele e a mãe discutiam muito sobre como devia ser. Pelo menos era um privilégio poder escolher o rosto de uma filha assim, mesmo que só em duas dimensões. Tinham o cuidado de ir desenhando rostos de bebê. O pai estudou bem as proporções típicas do rosto nessa fase: distância entre a boca e o nariz, das narinas aos olhos e assim por diante. Se errasse um milímetro sequer em uma proporção, ela já pareceria mais velha, até adolescente se errasse muito. Olhos grandes, nariz pequeno bem perto dos olhos, bochechas salientes… E a coisa se complicava ainda mais porque os dois queriam traços nela que se assemelhassem a seus próprios rostos, claro, o carimbo da paternidade e da maternidade, sem pender mais para um que para o outro, como a natureza sacana costumava fazer. Lembra a mãe, lembra o pai… 50%x50%. Mas não é fácil desenhar assim!
Não chegavam a um acordo sobre como devia ser a boca. A mãe queria um formato o pai outro. A mãe ri até hoje quando conta que ia na calada da noite mudar para o seu jeito. De manhã o pai já havia mudado para o seu. Ele tinha mania de fazer uma boca desproporcional, a la Angelina Jolie, nada a ver com a família…
Melina foi crescendo e os pais tinham o cuidado de pintar seu rosto conforme a idade pedia. As proporções iam mudando pouco a pouco. Estudaram como o nariz ia ficando cada vez mais distante dos olhos conforme o tempo passava, e como a boca aumentava…
Continua…
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