97-Marcitta

“Ser feliz é simples, o difícil é ser simples…”

Marcitta nasceu com o cérebro diminuto. Uma pessoa normal tem 80 bilhões de neurônios. Marcitta possui apenas 16 milhões de neurônios, que é o mesmo número que se encontra no cérebro de uma rã. Para vocês terem uma ideia, um rato tem 76 milhões de neurônios, mais de 4 vezes o que Marcitta possui.

As pessoas a tratam muito mal… “Sua retardada”. “Sua acéfala”. “Sua songa-monga”. “Sua anta”. Na verdade, tecnicamente chamá-la de anta seria um elogio, visto que esse animal possui 1 bilhão e seiscentos mil neurônios… Algo anos luz na frente de Marcitta com seus meros 16 milhões. Mas as pessoas querem mesmo é depreciá-la o tempo todo, irritadas com seu atraso mental, que na verdade não é atraso. Com o que tem disponível, Marcitta se sai excepcionalmente bem, se compararmos proporcionalmente em relação aos outros seres humanos mais abastados neurologicamente. Porém, esse “excepcionalmente bem” é excepcionalmente irritante para nós… Não sabemos o que fazer na sua presença porque teoricamente é um ser humano que está ali… Mas é um Q.I. de um sapo. Ela está sempre com uma cara de quem não está entendendo nada. Isso irrita e comove ao mesmo tempo. É enervante ter que achar um jeito simples para que ela entenda o que queremos expressar. Um sapo não quer saber sobre nosso mundo. Marcitta quer. Isso que é desesperador. Por que a natureza fez um ser assim, no meio de dois mundos? Não foi ela, nós é que forçamos a barra para integrar Marcitta, como tenho esperança de convencê-los no decorrer desse capítulo …

A pobre tem sentimentos humanoides. Não é um cérebro anfíbio apenas. Ela sente, chora, questiona, sofre, sorri… Mas confesso que inicialmente senti-me infeliz quando os pais dela me procuraram para ajudar, pois não estava achando o caso suficientemente bizarro para me instigar. Mas fiquei sem jeito de recusar, o casal parecia extremamente aflito, sem saber o que fazer com a filha, destruídos emocionalmente pelo jeito que os outros a tratavam. Meu desempenho no caso é que me salvou do tédio, me agradou sobremaneira, pois foi corajoso, ousado, desafiador das ideias sociais estabelecidas e quase custou meu diploma… O tratamento em si foi a grande aberração no caso Marcitta. Não falo isso com soberba ou para que me admirem, mas foi assim que as coisas se desenrolaram. Mas vamos por partes.

No começo, minha dúvida era a seguinte: deveria eu tentar conduzir Marcitta para um estado mais próximo dos humanos, desenvolvendo ao máximo sua inteligência obviamente limitada, ou deveria fazer o contrário, conduzi-la a uma vida mais próxima da de um sapo mesmo, condizente com seu Q.I.?

Optei pela segunda opção depois de uma conversa de meia hora com ela. A moça era estúpida demais. Era muito melhor fazer os poucos neurônios que se consideravam humanos se voltarem para uma vida mais simples- em um nível anfíbio talvez – do que tentar fazer sua parte cretina ser mais humana . Mirar uma interação maior com a humanidade era um objetivo irrealista que continuaria a gerar frustrações severas na pobre “menina” e em seus pais.

Em termos chulos eu queria emburrecê-la, fazê-la perder qualquer intenção de sofisticação além do que se pode fazer com 16 milhões de neurônios. “Emburrecer” é um termo totalmente incorreto. As pessoas é que tentaram sofisticar o insofisticável. Eu queria somente era por Marcitta no seu lugar, no sapato que serve a ela. Vencer os limites aqui significaria vencer os limites do preconceito de que ser menos racional e mais instintivo é errado, menor, defeituoso. Grandes estudiosos de pessoas com defeitos físicos, ou melhor, estruturas físicas diferentes do habitual, mostram que na maioria dos casos, aquelas que tentam a vida inteira vencer seu problema fazendo cirurgias, consultando especialistas, lendo livros, fazendo cursos, e tudo o mais, estão sempre deprimidas, obcecadas em se livrar do “defeito”, nunca atingindo um resultado que as satisfaçam. As que se aceitaram, abraçaram o limite, o assumiram como característica pessoal e não defeito, começam a ter uma vida mais satisfatória e plena. A vida passa rápido… Vamos ser felizes com o que temos. A partir disso o limite pode virar qualidade e oportunidade. Não digo isso romanticamente, mas sim objetivamente. Abrace sua esquisitice. Caso você seja estranho…

Criei um plano para “de-sofisticalizar” Marcitta. Queria que ela entrasse em contato direto com seus instintos. Nosso lóbulo frontal, a parte mais externa de nosso cérebro, avalia a mensagem que o cérebro reptiliano enviou, que é o cérebro instintivo em nós, “imediatista”, que fica na parte de baixo. Os comandos que ele emite do tipo “fuja”, “ataque”, “coma”, “acasale” não são acatados imediatamente, mas avaliados. Essa é tida como a grande evolução do ser humano. Parar para refletir, com o maravilhoso lóbulo frontal. Era esse intermediário que eu queria fazer sumir ou atrofiar o máximo possível em Marcitta. Seu lobuluzinho frontal era ridículo demais para averiguar comandos, repensar orientações, achar-se humano, querer questionar a vida.

Comprei milhares de moscas e soltei no consultório. Trouxe um sapo para ela observar. Queria que ela entrasse em contato com esse tipo de comportamento. Era o contrário do processo do menino lobo, o caso do menino que se tornou selvagem por circunstância, porque que viveu anos sem gente por perto, mas só entre lobos, adquirindo os hábitos deles. Após ser encontrado, ele foi reeducado como humano civilizado. Nesse caso, o menino tinha 80 bilhões de neurônios. Trazê-lo para o nosso comportamento era o correto. Marcitta é exatamente o contrário. Forçaram uma humanidade em alguém lobo… Muito menos que lobo na verdade. Eu precisava levá-la para a vida que era para ela.

O único olho dela estava ainda mais assustado, tentando entender minha intenção com aquelas milhares de moscas soltas. Eu sei que o lado dela que ansiava a humanidade estava chateado comigo. Era aquele momento delicado de dizer para uma criança: olha, você não tem o menor jeito para ser jogador de futebol, mesmo você querendo tanto. Por mais sofrido que isso possa ser, e por mais que pareça maldade, evitará muito mais dores no futuro e por isso é o que precisa ser dito o mais rápido possível. E não me venha o povinho new age dizer “podemos tudo, basta querer”. Não, não podemos tudo. Temos que saber quem somos. Marcitta precisava confiar em mim. Com aquelas moscas ali e o sapo, eu estava dizendo a ela: você não tem o menor jeito para ser humana. E isso é ruim? Eu mais que ninguém sei que os rococós produzidos pelo número exorbitante de neurônios que temos não serve para nada. Ela seria mais budista do que talvez eu jamais conseguisse ser. 16 milhões está ótimo para ser feliz.

Lembrei de uma frase maravilhosa de Einstein. “Todos são gênios. Mas se você ficar perguntando para um peixe quão bem ele trepa numa árvore ele se sentirá um idiota a vida toda. Era essa linha de pensamento que estava guiando meus atos com Marcitta. Não queria que ela quisesse mais do que podia. “Mais” não é o termo correto, apenas não querer ser o que não se é. Era só olhar na tabela: tanto de neurônio é capaz de produzir tanto de consciência e razão. É matemático. Não peça para que um bananeira dê maçãs.

Marcitta entendeu meu direcionamento e começou a tentar pegar moscas com a boca. Seu olho estava úmido, estava triste de ter que fazer isso. Era um preconceito humano que não era dela, veio dos que têm neurônios demais. Eu apostava que uma hora ela ia começar a se divertir.

Claro, a língua de Marcitta era deficiente. Estava usando como modelo a vida dos sapos apenas porque calhou de eles terem exatamente o mesmo número de neurônios que Marcitta. Mas para ela era dificílimo apanhar uma mosca. Anatomicamente ela não era um sapo, e não tinha inteligência humana para armar um estratagema para comer as moscas. Conseguiu uma ou outra, mas também foi porque espalhei milhares delas pela sala. Eu mesmo, sem tentar, só de suspirar e bocejar algumas vezes engoli algumas.

Uma das coisas desagradáveis de ficar perto de Marcitta eram os arrotos… Olhem o papo dessa “mulher” e imaginem o que era um arroto dela. E era um atrás do outro… Mas e se eu rebatizar a coisa de “coaxar’? Os animais não se importam com sons do metabolismo. Nós é que temos mais essa neura, entre tantas outras.

A necessidade é mãe da invenção, nesse caso, da sobrevivência. Eu precisava forçar Marcitta a involuir. Pensei numa atitude mais radical. Dentro de um consultório, cheio de livros, mesas, tudo que remete a hábitos humanos, ela jamais involuiria. Eu precisava de um habitat condizente, que me ajudasse no processo de de-sofisticalizá-la. “Dehumanizer” era meu papel aqui. Eu precisava era de um pântano, largar Marcitta lá, entre seus semelhantes, seres de Q.I. parecido. Mas seria irresponsável jogá-la assim num lugar estranho de repente. Não se devolve nem uma baleia que esteve em cativeiro por muito tempo ao oceano, porque morrerá, quanto mais Marcitta que tem muito menos que um milésimo do Q.I. de uma delas.

Quando contei meus planos aos pais de Marcitta, o pai quis me agredir. Saiu de meu consultório jurando que acabaria com minha carreira. De fato, um mês depois, recebi uma intimação para comparecer à justiça. Estava sendo processado pelo que o advogado deles chamou de “tratamento hediondo e desumano”. Citava o fato de eu ter feito a vítima comer moscas e proposto criar um pântano para fazê-la perder sua humanidade. Pediam que eu fosse impedido de clinicar pelo resto da vida.

Continua…

No começo, minha dúvida era a seguinte: deveria eu tentar conduzir Marcitta para um estado mais próximo dos humanos, desenvolvendo ao máximo sua inteligência obviamente limitada, ou deveria fazer o contrário, conduzi-la a uma vida mais próxima da de um sapo mesmo, condizente com seu Q.I..