Sarah – A menina caixão

Paciente de número 78 do livro Aberrações Genéticas Extraordinárias

Sarah enxergava tudo no mundo através de uma perspectiva muito peculiar: nasceu com um pequeno caixão em volta de sua cabeça. Os médicos a princípio deduziram que aquele envólucro era um tumor. Mas logo mudaram de opinião, pois era inegavelmente feito de madeira, desconhecida e estranha, mas sem dúvida, madeira. E ainda possuía figuras geométricas entrelaçadas que pareciam terem sido feitas por um talhador habilidoso e uma inegável cruz no topo. O diagnóstico foi conclusivo e inquestionável: era um caixão.

A mãe, Dona Vânia, uma senhora simples e sem estudos, sem qualquer sofisticação, esbravejou quando viu o bebê recém saído de suas entranhas:

-Pra que um caixão de cabeça? Quando ela morrer vai ter que comprar um pro resto mesmo?! Coisa besta!

Dona Vânia, irritada, começou a tentar arrancar o pequeno caixão da cabeça da bebê, julgando-o mórbido e antiestético. Ainda por cima ela era judia e aquela cruz em relevo a incomodava sobremaneira. Mas voava sangue para tudo quanto era lado quando ela tentava. A madeira fazia parte de Sarah, estava unida aos ossos, a veias e artérias e à pele. Nascia de novo se lascava. Os médicos pediram que a mãe parasse com aquilo e se conformasse. Uma hemorragia seria fatal ao bebê. Pelo menos Dona Vânia gostava que o pequeno caixão tinha uma tampa, e a fechava para não ouvir os choros constantes da bebê madrugada afora. Abafados, eles incomodavam menos. Sarah aproveitou essa tampa também mais tarde quando cresceu, tanto para dormir melhor, quanto para se esconder do mundo como um avestruz faria. Era útil.

O tempo passou. A cabeça cresceu e o caixão também, sempre mantendo a mesma proporção. A face é que ficou um pouco mais para dentro, afundada, sempre um tanto escondia pelas fortes sombras projetadas das laterais do caixão que nunca permitiam que a luz a revelasse por inteiro, criando uma atmosfera noir de “um rosto imerso em escuridão”. Via-se apenas partes isoladas, miríades fascinantes de fragmentadas silhuetas,  nunca o furtivo todo. Mas era o suficiente para perceber que era um belíssimo rosto, sempre poetizado pela impositiva iluminação mais lunar do que solar. Tornou-se uma jovem muito ativa, mas é claro, diferente. A vida para ela era um constante velório. Todos a viam como alguém partindo.

As pessoas a princípio a estranhavam nas festas e casas noturnas, dançando dentro de seu pequeno caixão de cabeça. Mas ela era uma pessoa cheia de vida e feliz, apesar de nunca poder abstrair do fato de que um dia iria morrer definitivamente. Sua presença parecia um lembrete a todos a sua volta também. Ver um caixão dançando e animado era uma experiência interessante e inesquecível, chacoalhando nossa associação da morte à dor.

Algumas vezes por mês ela morria de fato, por algumas horas. Sua mãe quase a enterrou a primeira vez que isso aconteceu. Ela passava por todo o processo da morte, mas tudo o que demoraria normalmente alguns dias, acontecia em apenas algumas horas. Seus olhos paravam de mexer e ficavam vidrados. Sua pele ficava branca, sem sangue, fria e dura. O rigor mortis era total. A putrefação era a jato, vinha desagradabilíssima e arrasadora.

A mãe ficou possessa quando a filha voltou a vida nessa primeira vez que morreu, pois gastara “uma dinherema”, em sua linguagem, ao comprar um caixão de corpo inteiro para ela.

-Ô menina esquisita…

Depois se habituou aos constantes falecimentos da filha seguidos das tediosas e previsíveis ressurreições. Só se alterava se algum fluído ou outro escorresse dela enquanto cadáver e manchasse seus preciosos tapetes ou o querido sofá…

-Vai morrer pra lá Sarah, que saco…

Continua…

-Pra que um caixão de cabeça? Quando ela morrer vai ter que comprar um pro resto mesmo! Coisa besta!