Desdêmona- A crente irada

Paciente de número 51 do livro Aberrações Genéticas Extraordinárias

Podemos chamar Desdêmona de uma dessas forças da natureza que jamais conseguiremos totalmente explicar ou muito menos domar. Arrependi-me muito de no começo de minhas consultas com ela, ter tentado modificá-la e ter batido de frente com as suas ideias. Mas não sabia realmente com o que estava lidando, com a enorme e infinita força que não pude apreender e compreender de início e que depois me assombrou pro resto da vida.

Quando começamos nossas consultas, ela já era uma celebridade. Não a lenda que se tornou hoje em dia, mas já contava com um séquito considerável de seguidores. Ela não me procurou querendo ajuda, mas sim querendo me convencer a aliar-se a ela, por me considerar um homem inteligente e influente.

O que me fez recebê-la? A interessar-me por ela? O fato de ela ser uma crente religiosa convicta e resoluta. Mas isso existem milhões certo? Mas não uma que com toda força de sua alma odeia Deus. Sim, essa era Desdêmona.

Ela tinha como ideia central de sua vida, que o nosso Deus, o Deus que nos criou, e o único que existe (segundo dizem), é um ser ruim e sádico e que sua missão na vida é expô-lo como tal, mostrar a todos que somos vítimas de sua crueldade.

Batalhas filosóficas com elas são inúteis. Nenhum argumento consegue mudar suas ideias. Mas eu disse que se ela não estivesse disposta a debater, eu não conversaria com ela e nem a receberia.

Ela começou nossa conversa citando todos os horrores que Deus permite e cria para nós humanos, e como a ideia de um diabo é estúpida para um ser onipotente, fantasia criada para ser um bode expiatório para que suas maldades recaiam sobre outro, e afirmou que se o ser humano é imperfeito é porque Ele assim o fez.

Eu concordei com tudo o que ela disse e afirmei:

-Se existisse um Deus onipresente e onipotente eu concordo com você que suas explicações para existência do mal e do sofrimento no mundo não convencem, só aos mais tolos, mas e se Deus simplesmente não existe? E se somos criaturas orgânicas apenas provindas de reações químicas de átomos alheios e inanimados? Sua revolta é contra os átomos? Contra o Big Bang?

-Como não existe Deus? – gritou ela- você é ignorante?

Não entendi porque não acreditar em Deus seria coisa de um ignorante. Não é nem o meu caso, mas aceito que os ateus sejam pessoas inteligentes. Esses tipos de ponderações sobre a criação costumam estar numa complicada faixa onde milhões de raciocínios diferentes são possíveis, bem explicados e convincentes, porém contraditórios entres eles e uma boa parte dos seres cultos do planeta, não acreditam num criador. Eu com minha experiência sabia que as pessoas usam a razão e seus raciocínios lógicos em lugares que as convém. Quando adentramos uma região emocional, essa lógica é distorcida para favorecer uma opinião cara a nós, que não queremos abandonar. Desdêmona jamais poderia supor a não existência de Deus. O que ela faria com sua revolta? Quem ela culparia? O único remédio contra uma dor profunda é culpar algo ou alguém. Culpar os átomos pela formação de sua vida seria tolo e ineficaz contra a dor da existência. Se ela não acreditasse em Deus, culparia os burgueses, o capitalismo ou os esquimós pedófilos.

-Você precisa culpar alguém- disse com certa confiança que depois me arrependeria.

-Alguém? É só um Alguém que criou essa droga de velhice, onde vejo todos os dias meus pais definharem, perderem os dentes, andarem com dificuldade. Alguém que me pôs nesse mundo cheio de ameaças e vírus, que me faz envelhecer, que me dá pessoas para amar e depois tira sem mais nem menos, Alguém que matou meu cachorro de câncer, Alguém que tirou meu avô da minha vó quando ela ainda era jovem e deixou-a com quatro filhos pra criar, Alguém que mata às vezes as mães das pessoas quando elas ainda são crianças e sofrem horrores numa fase que deviam estar brincando, crianças com braços decepados em guerra, estupradores que atacam sem nada para impedir, assassinos impunes, mas que Ele viu, Ele viu….

Desdêmona ficou assim por quatro horas. Juro por Deus, sem ironias. Ela discursava exatamente como aqueles evangélicos na igreja, mas o conteúdo era o oposto. Ao invés de maldizer o ser humano como é era o de costume, ela ia à fonte, quem o criou. Revolta por revolta, talvez a dela estivesse mais correta. Ela terminou seu discurso citando que nem uma folha de uma árvore cai sem que Deus saiba e permita, portanto Ele é o culpado.

Quando ela parou senti um alívio absurdo. Sua revolta gerava um ar opressor, difícil de aguentar.

Ela tinha como ideia central de sua vida, que o nosso Deus, o Deus que nos criou, e o único que existe (segundo dizem), é um ser ruim e sádico e que sua missão na vida é expô-lo como tal, mostrar a todos que somos vítimas de sua crueldade.

O fenômeno mais impressionante era que quando finalizava seus discursos irados contra Deus, ou mesmo durante, seu amor e compaixão pelo ser humano chegava a um grau tão intenso que começava a chorar. Só que essas lágrimas eram de sangue. Comprovei em laboratório que era sangue mesmo e constatei que saiam de seu canal lacrimal, sem nenhum artifício. Desdêmona chorava muitas vezes hemorragicamente, prantos longos e severos. Seus seguidores aplaudiam emocionados a crente revoltada. Erguiam os punhos convocando Deus a vir se defender. Faziam sempre trinta minutos de silêncio absoluto, para dar uma chance ao Criador de pronunciar-Se. Passado esse tempo sem nenhuma resposta, os xingamentos explodiam ainda mais selvagens e furiosos.

Desdêmona gritava aos céus: Isso é o melhor que pode fazer? É isso?

A partir de uma certa época começou então a divulgar uma petição, quem assinasse estaria comprometendo-se a participar da grande Greve Geral, onde todos os seres do planeta parariam de seguir suas vidas, parariam de caçar uns aos outros e tudo o mais, até que Ele concedesse as melhorias e condições mínimas pedidas no documento. Ninguém mais se submeteria às leis impostas por um ditador omisso. Era uma coisa romântica, mas levada a sério do ponto de vista moral, não que alguém achasse que aquilo aconteceria.

Alguns pontos tratados no documento:

Greve Geral

Nenhum ser mais deve passar pelos percalços da velhice.

Parar fisicamente aos 25 anos. Nenhum defeito físico em ninguém.

Ninguém pode ser feio, todo mundo tem que ser plasticamente perfeito. Só uma Angelina Jolie é perversão e opressão….  

Não existe mais o predador. Um ser só utiliza-se de outro se também o nutre e o vivifica.

Maldades contra inocentes serão impedidas antes de acontecerem, por um Deus atento e interessado.

Quem morre pode comunicar-se com quem vive quando quiser. Que uma forma clara e eficaz de comunicação entre os dois mundos seja estabelecida.

Que o corpo na hora da morte vire luz, sem necessidade dos horrores de ter que lidar com um cadáver em velórios, enterros ou cremações.

Que a alma se comunique com os parentes imediatamente após a morte, para que não haja medo de separação e dores desnecessárias.

Que nenhuma mãe perca o filho. Que a ordem seja sempre a natural.

Quem estiver mentindo terá o nariz encompridado imediatamente.  

Fizeram um filme sobre esse documento, que foi dirigido pela diretora de cinema The Acid Mother com o título de “Greve Geral”. A cena mais bonita no final, mostra todos os animais parando tudo o que estão fazendo e se reunindo num enorme círculo. Ninguém mais quer caçar ou fugir de ninguém. A natureza se recusa a continuar se suas regras não mudarem. Em outra cena marcante, os seis bilhões de pessoas do planeta aparecem carregando enormes cruzes sendo posteriormente crucificados por mãos invisíveis, numa clara alusão ao calvário e heroísmo que é a vida do homem comum, que é sempre malhado e condenado como pecador por sentenças também invisíveis. Nunca mais saiu de minha memória aquela cena, os bilhões de pessoas, inclusive crianças, mulheres e idosos, carregando cruzes muito maiores que seus frágeis corpos. É a ilusão do cinema que às vezes acerta em cheio.

 

O nome Desdêmona vem do grego e quer dizer “azarada”. Ela dizia que todos nós éramos “desdemoninhos”, ou “azaradinhos” por termos um Pai tão ruim. Vendeu milhares de camisetas e decalques com suas frases revoltadas:

“Se Deus é por nós, Imagine se fosse contra!!!”

“É meu bem, a felicidade quase que existe!”

“Jesus é o único filho de Deus. Nós somos filhos da Puta!”

Escreveu um pequeno livro chamado “Minutos de Amargura”. Deve-se abrir aleatoriamente em qualquer página para saber qual o “azar” do dia. O que Deus tem reservado para você!!!

Apesar de tudo, da revolta profunda e das crises de ódio violentos, poucas são as pessoas que de uma forma ou de outra não nutrem uma certa simpatia pela pessoa e pela causa de Desdêmona. Existe sim uma grande beleza em seu manifesto, no fato de que nós seres humanos não somos lá tão ruins, e nascemos sim sob milhares de condições adversas, sem saber por que nascemos, suportando frio, calor, solidão, abandono, perdas, a velhice, a morte dos entes queridos, a briga pela sobrevivência, doença, tendo que ouvir milhões de idéias diferentes sobre tudo e optar por algumas, sem saber se são as certas. Não, ninguém pode dizer que é fácil!!! Um dia ou outro, todos sentimos vontade de assinar a petição de Desdêmona. Por que a vida não poderia ser diferente? Mais leve?

Os milhares de bonecos produzidos todos os anos da figura de Desdêmona e que a s pessoas se presenteiam, simbolizam esse apreço pelo ser humano. Vai muito além da revolta contra o criador, e querem evidenciar o fato de que somos heróis sim, que não é fácil o que temos que suportar e que talvez a criação possa ser diferente num futuro. Reconhecer que somos bonitos e produzimos coisas maravilhosas mesmo às vezes com tudo contra. A religião de Desdêmona é o oposto de todas as outras. Se alguém lhe der um boneco dela, esta pessoa estará lhe dizendo: parabéns pela coragem de existir nesse mundo, de acordar todo dia apesar de tudo, sem saber se vai valer a pena.

Não posso deixar de fazer uma última consideração. Se existe um Deus, um criador que tudo criou, então Ele criou e fez Desdêmona assim como ela é, com sua revolta contra Ele mesmo. Portanto tanto Ele quanto Desdêmona são paradoxais e incoerentes. Mas ao que parece tudo na vida é assim. Se eu disser a Desdêmona que foi Deus quem deu sua revolta ela vai se revoltar e discursar por horas… Deus me livre.

Desdêmona está no momento fazendo uma grande peregrinação pelo mundo todo para recolher assinaturas para um abaixo-assinado que pede o impeachment do atual Deus. Um documento detalhado explica as razões da necessidade de cassação do atual gestor universal, rechaçando inteligentemente todos os discursos de defesa a esse ser que normalmente se faz -teorias descabidas e insustentáveis para protegê-lo e isentá-lo de culpa- como por exemplo a situação da Terra ser fruto de livre arbítrio dos humanos e carma acumulado de milênios. Milhões já assinaram. E você? Assina ou não assina?

No dia 07 de outubro de 2015, 30 mil pessoas se reuniram em Madrid, sob a liderança de Desdêmona, para gritar por duas horas ininterruptas olhando para o céu, a palavra “Omisso”. Em breve a gravação aqui do coro de indignados…