41-Comunidade

Paciente de número 41 do livro Aberrações Genéticas Extraordinárias

Essa pessoa me procurou dizendo que era muitas pessoas. Achei que isso era uma metáfora, um conflito interno entre seus muitos e conflitantes eus. Mas ele, ou eles afirmavam que não.

Disseram, ou disse, não sei qual conjugação verbal usar nesse caso, que o nosso planeta vem enfrentando um problema grave de espaço. Quase sete bilhões de bocas a serem alimentadas, precisando de moradia etc. E como existem muitos e muitos milhões de almas necessitando encarnar na Terra para purgar carma, o jeito que o Universo encontrou foi encarnar muitas almas num mesmo espaço físico, ou seja, um só corpo. Afirmaram que aquilo agora iria ser normal no planeta.

-As pessoas que tem um corpo só pra elas não dão valor doutor. Nem mereciam ter!

Não acreditei em nada daquilo é claro. Os inúmeros olhos não me impressionaram. Não queriam dizer absolutamente nada. Uma aranha por acaso tem oito almas?

Aquele homem, ou mulher ali ,tinha uma só boca. Cada hora era um tipo de fala e voz que saía dela. Mas isso era o típico caso de múltiplas personalidades. Estava com preguiça de tratá-lo. Era um caso muito banal.

Eu estava ciente da filosofia do espiritismo e das ideias reencarnatórias. Sabia inclusive que muitos se sentem possuídos por espíritos desencarnados. Mas nunca tinha ouvido falar de uma comunidade que tinha encarnado junta num mesmo corpo, de nascença. Que ideia estúpida esse cara teve pra justificar sua loucura.

Disse-me que cada olho era uma janela própria pra cada alma, mas o resto tinham que dividir.

Eram em 51 pessoas. Homens e mulheres. E uma só boca. Quando perguntei seu nome me arrependi. Tive que ouvir 51 nomes diferentes. Pelo menos ele era criativo, não repetiu um nome sequer.

Passei a chamá-lo simplesmente de Comunidade, mas com o tempo achei que isso alimentava sua fantasia, então mudei, escolhi um de seus “moradores” como nome oficial: Svenson.

Ouvi muitos protestos dos “outros”. Ficaram revoltados. Diziam que eu estava favorecendo um só indivíduo dentro da comunidade chamando-os de Svenson toda hora. Estavam certos. Realmente das coisas que ouvia, as de Svenson pareciam mais equilibradas. Queria repetir bastante aquele nome para ele um dia assumir de vez só aquela personalidade e abandonar as outras.

Com o tempo só Svenson falava comigo. Os outros nem mais me cumprimentavam. Senti que ele estava se curando, escolhendo e assumindo o que queria ser. Um só “eu”.

Eu estava bem enganado. Um dia Svenson chegou à consulta e disse:

-Doutor, a galera tá revoltada aqui dentro. Disse que se o senhor não der um jeito nessa situação vão furar o nosso corpo todinho.

Svenson demonstrava realmente estar com medo. Parecia um refém nas mãos de loucos ensandecidos. Tremi quando vi a faca ameaçando a própria garganta.

-Eles tão falando sério doutor- Svenson tinha a voz trêmula!

Quem usou a boca então foi um dos piores elementos da Comunidade, o Padilha…

-Aí meu camarada. Ouve bem nossas condição (eu sabia já quando era ele, pelo português precário). Nóis qué cinquenta corpo recém falecido estendidinho aqui pra cada um de nóis valeu? Se tu fizer o que a gente manda o babaca do Svensu fica com essa porcaria aqui só pra ele valeu? Vai logo qui nós qué sai daqui morou? Nóis num aguenta mais esse burguês de merda ter tanta preferência só pruque fala bonitinho….

Se eles tiveram a mesma educação desde pequenos, como pode cada um ter uma cultura diferente? Esse era um furo na história deles, ou dele. Mas também era um furo na minha desconfiança. Ele fazia tão bem aquelas personalidades diferentes que eu quase acreditava.

Precisava agir logo. A coisa estava séria. Chamei uma médium que morava na minha rua. Foi a única idéia que me ocorreu naquele momento. Queria que ela expulsasse as outras almas daquele corpo. Pra mim, era explusar as outras personalidades dele. Como ele acreditava em espiritismo, talvez funcionasse em sua mente. Efeito placebo. Mas a mulher médium levou muito a sério meu pedido, pois é claro, acreditava em sua profissão.

-Meu Deus- exclamou ela- são cinquenta e uma almas no mesmo corpo. Eu estou vendo cada uma delas. Vou ter que cobrar a mais!

Na hora me arrependi de tê-la chamado. Ela estava confirmando e piorando a loucura daquela pessoa doente. E agora eu tinha dois loucos em minha sala. Mas foi um risco que tive que correr. A situação era desesperadora.

Confirmei que pagaria o quanto fosse necessário. Ela então tentou executar o exorcismo ali mesmo. Fez uma cerimônia comprida de banimento, mas não funcionou. Tentou mais vezes, mas a hora que achou que entendeu porque não estava funcionando, parou. Me disse que aquilo não era possessão. Todas aquelas almas estavam naquele corpo por direito, era de nascença. Encarnadas. Não havia o que fazer. Tentar tirar uma só sequer seria um sacrilégio contra as determinações divinas.

Padilha reclamou:

-Ki putaria é essa doutor? Cadê os corpo que eu te pedi? Vou furar esse corpo todinho camarada!!! E dessa dona também!

Fez a mulher espírita de refém! Agora sim eu tinha me metido num problemão. A situação estava mil vezes pior. Eu colocara em risco a vida de alguém que não tinha nada a ver com isso.

Continua…

-As pessoas que tem um corpo só pra elas não dão valor doutor. Nem mereciam ter!