O pai de Movielina tomou uma atitude bizarra… Era riquíssimo e fez um cinema de uma só poltrona e uma imensa tela só para ele mesmo ver. Não queria ser incomodado por ninguém. Como estava já com quarenta anos e nunca havia encontrado um só filme que prestasse, sentiu que tinha pouco tempo de vida para encontrar um satisfatório, que funcionasse. Fez cálculos de que com o dinheiro que tinha, podia ficar sem trabalhar até a morte (uns quarentas anos a mais pela frente), podendo arcar com as despesas da busca pelo filme bom e ainda deixando a filha bem de vida. Era o suficiente.
E a coisa funcionava assim: o filme só parava quando ele adormecia. No resto, as sessões eram ininterruptas. Assim que acabava um filme, outro começava sem intervalo. Vários projetistas se revezavam nunca deixando um só momento sem filme rodando. Seus funcionários traziam produções de todos os cantos do mundo. Havia mais filmes do que horas restantes na vida dele. Portanto, um comitê de notáveis escolhia entre as mais recentes novidades de qualidade e preciosidades estabelecidas da história do cinema, as que considerassem com mais chances de ele gostar. Nunca mais tomou um banho. As necessidades eram feitas na poltrona mesmo que tinha encanamento por baixo para carregar seus dejetos. Nunca mais viu a luz do dia, mas só a que saía do projetor. Apesar de poder andar, nunca mais o fez e suas pernas atrofiaram por completo. Comia bastante, mas eram empregados que traziam a comida com o máximo de cuidado para não tirar a atenção do filme. Trocavam constantemente e discretamente as bandejas com petiscos e refeições na mesa da poltrona. A ordem era pra que nunca acontecesse de a mão dele baixar e não encontrar algo fresco e saboroso embaixo. Ele nem olhava para pegar, sempre ocupado que estava. Mas pagava a todos muito bem, que diligentemente cumpriam suas funções específicas.Para evitar a proliferação excessiva de escaras (lesões na pele causadas pela pressão contínua da poltrona no corpo, o que impede a irrigação ideal do sangue), ele se cercava de colchões de água, de ar, e de gel de silicone. Movia-se muito pouco. Só o ajeitar e se reajeitar constante de quem está sentado.
Movielina era a única pessoa autorizada a sentar no chão ao lado do pai, mas não lhe era permitido falar. Ela entrava, e silenciosamente se recostava ao lado da poltrona do pai. Ele lhe dava as mãos, reconhecendo sua presença, mas os olhos jamais pousavam sobre ela. Mantinha-os fixos na tela. Dizia que é preciso concentração total para poder ser um espectador de verdade. Não queria deixar a desatenção fazê-lo perder algum bom momento de um filme, e todo mínimo instante pode ser fundamental para entender a conclusão e o filme como um todo.
Movielina na maior parte do tempo quando estava com o pai ao invés de olhar o filme olhava o pai. Via o reflexo do filme em seus óculos e as feições de asco e repugnância que fazia, retorcendo-se incomodado, sempre insatisfeito com o que via. Às vezes soltava uma frase mais exaltada do tipo “mas que bosta” ou “que lixo abominável”.
Mas havia momentos em que o pai sorria e até chorava. Mas logo alguma cena vinha e “estragava tudo” como ele costumava dizer. “Dá até mais raiva” segundo ele. A menina sentia uma alegria indescritível quando esses raros momentos aconteciam: “Meu pai rindo! Emocionado!”, suspirava. Como sabia que logo em seguida algo iria desagradá-lo profundamente anulando a cena boa e todo o momentum criado, ela aprendeu a assim que o pai visse uma cena que o agradasse, sair correndo do cinema para levar consigo aquele sorriso, ou lágrimas de emoção,ou as raras risadas…
Sua morte foi notícia em todo o mundo, ainda que de forma irrelevante.
Morreu de ataque cardíaco. O homem do projetor que estava responsável pelo filme no momento fatal, contou que o pai de Movielina se exaltou demais com a conclusão. Ele vinha praguejando muito pouco e essa parecia ser a melhor sessão que já tinha acontecido até ali, ao menos na opinião desse projetista, das que ele já tinha testemunhado. As gargalhadas entusiasmadas e os momentos de quietude sem um suspiro sequer, revelavam que ele parecia estar apreciando. Mas no final, o desapontamento deve ter siso maior justamente pela expectativa de ser o primeiro filme bom… Ele gritou com muita raiva quando viu “The End” na telona. Começou a berrar a plenos pulmões frases como “fodeu com o filme, fodeu!”, “como pode cagar assim no final?” e coisas do tipo… Até que o coração não aguentou e morreu com a frase nos lábios “puta que pariu, que filme ruim”.
Estava com 66 anos. Foram 26 anos ininterruptos de filmes insatisfatórios.
As revistas e sites especializados em cinema aguardavam ansiosos pelo filme que aquele homem maluco apreciaria. Ficar 24 horas vendo filmes o colocou imediatamente num status de celebridade por todo o mundo. Foi um balde de água fria para todos “o dia do filme bom” não ter acontecido. Era só uma curiosidade extravagante das pessoas e da crítica querer saber que filme seria esse. Mas não aconteceu… As revistas até programavam uma capa com “o grande escolhido”. Sua morte virou apenas uma melancólica nota de rodapé e ainda sarcástica. “A humanidade não fez um filme bom sequer: cinéfilo morre de desgosto!” era a manchete de uma delas.
Muito mais triste foi para Movielina que não pôde ver o pai satisfeito com a coisa que ele mais amava na vida. Deve ser duro amar uma coisa que nunca é boa o suficiente.
Mas as coisas são o que fazemos delas. Movielina reagiu. Como uma pessoa que perde um ente querido para uma grande doença como câncer ou Alzheimer, e depois se torna um militante da causa para ajudar outros a não passarem pela mesma coisa, Movielina criou toda uma filosofia e um tratamento para curar pessoas diagnosticadas com o mesmo mal que o pai dela.
Inteligentemente batizou esse tratamento de “Bad Movie, Great Scene”, que foi feito com a ajuda do Dr. Arbo.
Cartas foram achadas entre os dois, onde discutiam a elaboração do projeto.
Continua….
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