Fábio – Um fruto que nasce em minha cabeça

Paciente de número 30 no livro Aberrações Genéticas Extraordinárias

Na ponta da cabeça de Fábio, nascia um fruto que ele era obrigado a comer de tempos em tempos. Esse fruto continha substâncias essenciais para sua sobrevivência, que não encontraria de nenhuma outra forma, em nenhum outro alimento. O lado drástico e fantástico disso é que depois da ingestão ele virava um novo homem com imprevisíveis e radicais mudanças de opinião, sendo todo esse processo totalmente alheio a sua vontade de mudar ou não. A coisa era impositiva e duraria até a próxima estação, quando um novo fruto já estivesse maduro. Daí outra pessoa emergiria e assim por diante. Esse novo ser que nascia a cada fruto, podia ser irreconhecível aos seus familiares e amigos e a seu antigo eu.

Ele estava prestes a ter que comer a frutinha. Estava inconsolável. A princípio não entendi direito o seu drama visto que julguei salutar a possibilidade de mudar de opinião já que a maioria das pessoas não o consegue, mas depois acabei por entender seu tormento. Disse-me que quase todas as suas principais opiniões e gostos sobre a vida seriam alterados de forma radical. Com quase toda a certeza perderia a atração sexual pela esposa e com uma probabilidade bem maior do que o irrisório, deixaria de amá-la. Provavelmente se interessaria por alguma mulher que nem conhece, que nem tem intimidade ou uma história juntos. Essa mudança de opinião estragaria seu lar. Seus filhos sofreriam, iria ser o caos. Não compartilharia mais das opiniões com os velhos amigos e teria que abandonar as divertidas reuniões que tinha frequentemente com eles.

A fruta pendia ameaçadora sobre sua cabeça, já fazendo sombra sobre sua visão. Estava fraco e debilitado, pois já devia tê-la comido há algumas semanas. Estava adiando ao máximo, mas seu corpo clamava pelo alimento. O instinto de sobrevivência falaria mais alto uma hora ou outra, e seus apegos a ideias e pessoas teria que ser posto de lado.

Despedia-se da esposa todos os dias com soluços profundos. Abraçava-a com força e podia-se ouvir no meio do choro ele dizendo: deixarei de te amar, deixarei de te amar….que mundo horrível, prefiro morrer…

-Por que nasci assim doutor?

Essa era a pergunta estampada na face de todos os meus pacientes. Era o denominador comum de todos. Uma coisa é nascer normal e funcional para o mundo como são vocês meus leitores. Outra coisa é ser uma aberração. Não há um dia sequer que passe sem que uma aberração se pergunte: por que sou assim?

E como desvendar os mistérios da natureza? Por que a esse pobre homem coube o macabro destino de mudar de opinião dessa forma? Ter que comer uma fruta que nasce em sua cabeça? Que vai crescendo pouco a pouco até que o corpo não pode mais viver sem?

Disse a ele que minhas respostas sobre tudo são sempre especulações, mas que juntos poderíamos chegar a ideias que tornam o que antes parecia uma maldição, uma bênção.

Insisti para que comesse a fruta, pois já estava magro demais e temia por sua vida.

Disse que no dia seguinte o faria. Não dava para adiar mais. Estava com a visão turva e as mãos tremiam.

Naquela noite de véspera de comer o fruto, fizemos um inventário detalhado de todas as suas opiniões, gostos e ideias sobre tudo o que foi possível imaginar. Seria imprescindível ter esta lista em mãos para compararmos com suas novas ideias e assim tentarmos traçar um perfil de como o fruto age, se há um padrão. Faríamos isso em todas as épocas em que estivesse prestes a se alimentar de novo. O antes e o depois.

Uma coisa é nascer normal e funcional para o mundo como são vocês meus leitores. Outra coisa é ser uma aberração. Não há um dia sequer que passe sem que uma aberração se pergunte: por que sou assim?

Triste dizer, mas na consulta seguinte ele não apareceu. Estava ansioso para saber os resultados do fruto. Mas mesmo um mês depois não recebi notícia. Resolvi ligar para sua residência, mas sua esposa me informou que ele a abandonara, saíra de casa e estava vivendo numa comunidade estudantil.

Infelizmente vim a entender depois que uma das opiniões que veio a mudar radicalmente nele foi a de sua idéia sobre mim e nossas consultas e pesquisas psicológicas. Lembro-me que tinha uma grande admiração pela minha cultura e inteligência e meu trabalho, repetia isso com frequência, mas agora quando o procurei, pediu para desculpar sua sinceridade, mas me considerava um idiota completo.

Não quis mais saber de nosso estudo e não consentiu em cooperar. Mas não encerrei o caso. Em sua pasta anotei todas as mudanças que pude notar naquele breve contato. Agora ele me parecia uma pessoa mais rude, mais simples, só que mais certa de si. Não aceito qualificar as mudanças como boas ou ruins. Apenas as observo como inevitáveis.

Segui minha vida com meus outros pacientes. Cinco anos depois, Fábio me procurou.

Sua opinião sobre mim mudara de novo. Interessante notar que sua memória era excelente. Suas novas opiniões não eram baseadas em esquecimentos e pequenas lembranças como as nossas, mas por reviravoltas radicais e sem explicação. Apareceu no consultório com uma pergunta que me desconcertou. Lembrava que havia me procurado, mas não entendia por que na época achava ter que comer o fruto e mudar de opinião uma coisa ruim. Lembrava de ter feito isso, mas não acreditava. Contou-me que mal podia esperar para comer o fruto de novo. Amava esse revigoramento súbito que corroía de uma só vez suas velhas e arcaicas opiniões sobre tudo. Indaguei se não tinha medo por essas mudanças serem tão arredias ao seu controle ao que ele me respondeu que é isso que as fazem interessantes, selvagens, imprevisíveis, sensuais.

A diferença de sua opinião sobre a mudança de opinião me desconcertou. Não sabia como tratar de um paciente cujos problemas se invertem tão radicalmente. Estava acostumado com pessoas com um só grande problema do dia que nascem até o dia que morrem. Mas ele queria muito saber o por que tinha sofrido tanto antes com sua, agora a chamava assim, bênção: o fruto que nasce em sua cabeça.

Logo me lembrei de sua ex-esposa. Contei como a amava e sofria em pensar que um dia isso sumiria. Ele disse que se lembrava bem disso,mas não conseguia mais entender. Encontrava-a todas as semanas quando ia pegar os filhos. Ficava as vezes pasmado olhando para ela por horas tentando captar de novo aquele sentimento que tinha antes. Lembra que achava tudo o que ela fazia lindo. Seu coração tremia quando ela sorria. E lá estava ela com o mesmo sorriso, os mesmos gestos, mas era só um sorriso, eram só gestos como de todas as outras pessoas. A mesma coisa com seus velhos amigos. Não lembrava mais por que certas piadas eram tão engraçadas. Por que as ideias que antes compartilhavam eram tão motivadoras e agora pareciam oriundas de um livro de segunda classe num sebo de uma rua decadente.

Interessante notar que uma de suas novas opiniões era a de que era importante saber o porquê que ficava antes triste com o fruto. Em sua penúltima rede de opiniões, ele parecia estar se lixando em analisar o porque das coisas e estudá-las. Até isso mudava muito. Agora ele gostava de comer o fruto, mas ao mesmo tempo queria saber porque antes não gostava. Intrincada rede de relações cambiantes.

Apiedei-me daquele homem ali na minha frente. Ele jamais conheceria o verdadeiro amor de um homem por uma mulher. Seu sentimento estava por demais comprometido com redes de opiniões, novidades e flutuações sazonais. Não saberia que as amizades sobrevivem mesmo quando nada em comum mais resta.

Mas julguei-o com pressa inadequada e injusta. Soube por terceiros que após comer o fruto seguinte, o amor por sua ex esposa voltou com toda força. E o mais bonito de tudo foi que na época seguinte, quando tinha que comer de novo para sobreviver, recusou-se terminantemente. A esposa que não o recebeu de volta, pois já se casara novamente, chorou ao saber que ele morrera por uma opinião, de que manter seu amor por ela era mais importante que tudo. Preferiu morrer a deixar de amá-la novamente. Seu amor seria seu único ponto de não mutação. Sua verdade. Assim decidiu ele.

Escrevi na pasta de Fábio que de alguma forma talvez o fruto não conseguisse de forma verdadeira alterar certas opiniões, mas conseguia confundi-las com outras, criando uma nuvem de caos e promessas de novidade. Mudar de opinião para sobreviver era a sina de Fábio. Ele decidiu não se adaptar a isso por amor a uma mulher. Ou talvez essa tenha sido somente uma última e equivocada opinião. Equivocada não, uma opinião apenas. Talvez amor. Minha opinião já não importa mais.