Lara

Paciente de número 50 do livro Aberrações Genéticas Extraordinárias

Podemos julgar o caso de Lara de duas maneiras diferentes. Ou ela é uma pessoa muito criativa, uma artista, ou é uma paranormal, capaz de enxergar um mundo real em uma dimensão paralela a nossa que só ela vê.

Lara realmente acredita que vê esse mundo que explicarei a seguir. Afirma categoricamente que nada é inventado por ela. Mas como constatar sua existência, se só ela tem acesso a ele?

Contou-me em nossas consultas que não é uma pessoa criativa. Nunca foi capaz de criar histórias, tocar algum instrumento musical, pintar ou dar uma tirada brilhante numa conversa. Desenha com muita dificuldade e apenas o faz por querer registrar as coisas que vê, para que outros possam ver também. Seus rabiscos são apenas uma débil pseudo-materialização e substancialização para os sentidos das pessoas normais.

Mas é experiência minha ter constatado que todo ser cria. Alguns tem consciência que criam, outros não. Somos todos artistas… O que ela me afirmava, de não ser criativa, provavelmente era só uma má percepção sobre si mesma. A ilusão de que não se ilude!

Porém, não vou pré-julgar o caso de Lara. Devo confessar que alguns fenômenos que ocorrem enquanto ela diz estar vendo esse outro mundo me impressionam. Seu único olho fica todo branco. Ela fica imóvel por horas. A própria forma bizarra de sua cabeça parece confirmar que é um instrumento de percepção diferente do nosso, capaz de captar outras realidades. Como dizem certos místicos, o mundo que percebemos é aquele que podemos perceber com os sentidos que nos foram dados e não “A” realidade. Existem outros?

Ela relata que vê uma dimensão que está aqui entre nós, mesclada à nossa, mas que é infinitamente pequena, mais ou menos proporcional a um quark, uma subpartícula atômica. Quando ela comprime seu olho com força, começa a enxergar esse “outro lugar”. Vai sintonizando o olho geométrico de sua bizarra cabeça até que o foco fique perfeito.

Ela relata que bilhões de seres inteligentes, denominados Splenkers, de dimensão sub-microscópica, habitam esse lugar. São os protagonistas de lá e por serem extremamente fascinantes, cativam sua total atenção, erguendo o desejo impossível de resistir de desenhá-los o tempo todo, para guardá-los na história humana também e não perder suas formas físicas únicas e os conflitos existenciais pitorescos.  Explica que possuem uma forma muito simples e peculiar: apenas um enorme olho quase sempre exageradamente arregalado, com nariz e boca abaixo dele e uma bola acima de tudo, cheia de ar, que parece um balão. Não há nada abaixo dessa cabeça, nenhum corpo. Não possuem membros ou tronco. Flutuam pelo ar por causa dessa cabeça-balão que os mantém suspensos, “voando”,  sem quase nunca encostarem no chão. Reparem os desenhos que Lara fez de alguns deles que incluí aqui.

O mais curioso, diz ela,  é que falam como nós e possuem um mundo muito parecido, com cidades, prédios, ruas, casas,  natureza, concreto, invenções e etc. A maior diferença sendo que cada habitante desse planeta vive um total de vinte segundos apenas. Não que esse tempo seja pouco para nós e muito para eles. Não. Vinte segundos é tão pouco para eles como é para nós. Eles têm que se conformar que toda sua existência, a distância entre o nascimento e a morte será de vinte segundos. Vocês imaginem a frustração que isso causa em todos. A infância começa e acaba em três segundos. Com três segundos de vida já se é um adulto apto a ganhar a vida. Com quinze segundos a velhice já pesa bastante no corpo. Aos vinte segundos todos morrem. Se não forem assassinados ou sofrerem algum acidente ou doença antes, morrem com toda certeza aos vinte segundos. Não há uma pessoa com 21 segundos por exemplo. É impossível.

A forma como morrem é curiosa. A cabeça que é praticamente feita só de ar, sofre um pequeno furo, que aparece do nada, e começa então a ricochetear, sendo jogada violentamente para todos os lados do céu como uma bexiga que se esvazia rapidamente.

Lara fica horas assistindo esse mundo, acompanhando vida e morte de milhares de Splenkers, todos os dias de sua vida, desde o dia em que os descobriu. Fica maravilhada com a inteligência e a sensibilidade demonstradas constantemente e comove-se profundamente com seus dramas sociais e existenciais. Anota as histórias mais interessantes para contar a todos. São diálogos breves que sempre, como não poderia deixar de ser, acabam em morte. Eternizar esses 20 segundos parece ser o maior prazer da vida de Lara, uma agente convicta da anti-evanescência.

Lara queria que eu arrumasse um jeito de provar a existência dos Splenkers. Raciocinou que eu como um experiente psicólogo poderia verificar a inexistência, nesse caso, de todos os mecanismos de auto-engano mental que possuímos para depois dar o diagnóstico a ela de “vidente lúcida” e não de artista esquizofrênica que acredita em suas próprias invencionices. Entristecia-se com o fato de que muitos desqualificavam os Splenkers como nada mais que uma “divertida” e efêmera ficção e aspirava o aval de um grande entendido dos assuntos da mente para provar a real existência deles e de que não era uma louca cheia de alucinações, muito menos uma artista. Mas eu pendia, é claro, muito mais para o diagnóstico de que Lara era infinitamente obcecada por sua finitude, pelo fato de que um dia morreria, pois esse parecia ser sempre o tema das histórias que contava. “De que vale tudo isso se vai acabar?”  parecia ser a trilha sonora de sua vida, constantemente sendo emitida por detrás de todo pensamento ou ação, por trás de cada história splenkeriana que ela desenhava… Será?

Continua…

Os desenhos de Lara são toscos, mas dá mais ou menos para entender o que ela vê. Quando rabisca um “X” é porque o Splenker faleceu naquele momento, sempre da mesma maneira, com um furo na cabeça…