O neurologista poeta

Redefiniu a visão que temos sobre a doença

O grande neurologista e escritor best-seller britânico Oliver Sacks morreu aos 82 anos, no dia 30 de agosto, vítima de câncer, como informou o  jornal “The New York Times”, que o descreveu como “o aclamado poeta da medicina moderna”. O autor de livros de sucesso como “Tempo de despertar” (1973), adaptado para o cinema em 1990 com Robin Williams e Robert De Niro, “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” (1985) e “Um atropólogo em Marte” (1995) estava em sua casa, em Nova York.

Oliver já havia anunciado em fevereiro deste ano, por meio de uma linda carta para seus fãs e amigos (na íntegra no final do post), que estava já em fase terminal, pois seu câncer espalhara por todo o fígado.

Os livros de Oliver contam as histórias de seus pacientes com problemas neurológicos de um jeito totalmente diferente do de outros médicos. Ele era capaz de nos mostrar a beleza da doença e as relatar nos livros de um jeito fascinante. Como comparou ele mesmo “uma Mil e uma Noites formada de casos neurológicos únicos”. Em suas palavras:

“…defeitos, desordens e doenças podem atuar tendo um papel paradoxal sobre as pessoas afetadas, trazendo a tona poderes latentes, desenvolvimentos, evoluções, formas de vida, que jamais seriam vistas, ou mesmo imaginadas, na sua ausência. É o paradoxo da doença, o potencial criativo que pode trazer, é disso que trata meu livro”.

O impacto de Oliver foi justamente esse. Não aceitar o termo “doente”, e sim mostrar que é uma maneira diferente de existir. O termo “deficiente” é muito relativo. Não há nada no corpo humano que seja perdido que ele não compense de alguma forma, trazendo um outro poder, uma nova habilidade que quem é “normal”, “completa” (tudo entre aspas) não tem.Ele cita que todos os grandes escritores eram maníacos-depressivos. A “doença” da mente, a tristeza, era compensada por doses cavalares de imaginação criativa que os colocava num mundo riquíssimo e interessante, suportável para eles sobreviverem.

Nunca esqueci do cego que Oliver descreveu que tinha uma visão interna muito mais rica que a nossa. Ele inclusive podia ver em 360 graus, uma amplitude inimaginável para quem tem dois olhinhos pequenos. O cérebro compensou de uma forma incrível. Ele criava as mais belas cenas e vivia nelas. Muitos cegos que começam a enxergar, acham o jeito que vemos uma chatice e entram em depressão. Ficam deficientes do jeito antigo deles de ver…

Não é só a beleza de como o cérebro se adapta e transcende o problema compensando que Oliver nos conta , mas em alguns casos a forma heroica e comovente de como uma pessoa que acaba de ser destituída de algo necessário para continuar levando a vida que levava, se apega à vida muitas vezes com muito mais garra que as “normais”, e dá a volta por cima, se adaptando de forma fascinante, e nos dando uma história mágica e inspiradora.

    A beleza das histórias, as pequenas vitórias diárias que equivalem aos feitos heroicos de nossos magníficos atletas olímpicos, ficariam esquecidas não fossem os livros de Oliver. Em algum lugar alguém está celebrando a força de vontade enorme que teve para mexer um dedo, ou controlar as químicas revoltas do próprio cérebro. Muitas vezes, quanto mais “deficiente”, mais heroica é a pessoa… Elas estão lutando contar forças limitadoras incríveis e tornam-se incrivelmente fortes por isso. Não é uma exaltação por pena que Oliver faz, é realmente verdade. São heróis… E vê-los em suas pequenas imensas vitórias é emocionante.

O impacto dos  livros de Oliver sobre mim tiveram seu auge quando provocaram um insight importantíssimo (ao menos para mim), que nunca mais larguei, e que uso como um mantra todos os dias.

Após devorar todos os livros de Oliver fiquei com mais compaixão pelas pessoas. Muito mais compaixão. E por que? Por que não são só os “definitivamente obviamente doentes” que são doentes. Todos nós temos problemas sérios em controlar as tempestades elétricas de 80 bilhões de neurônios e suas vontades autônomas totalmente desligadas da nossa mente consciente. Não é só a pessoa com Síndrome de Tourette, só para dar um exemplo que repete frases sem parar. Nós também… Pensamentos são entidades vivas… Por isso, nunca mais consegui dizer para uma pessoa de forma muito firme a frase “por que você não muda caramba, e para de fazer isso?” Por que é DIFÍCIL demais controlar nosso cérebro. Qualquer mínima desordem lá dentro e a coisa entra em curto. E ela nunca está em ordem… Não existe ninguém em ordem porque o cérebro não é uma coisa perfeita, uma máquina sem vontades e ao nosso dispor. Longe, bem longe disso…

Name: Annie Yi-Chieh Jen Teacher: Carin Goldberg Title: Oliver Sacks book cover series

A principal mensagem de Oliver para nós fica por conta de saber que essa coisa dentro de nosso crânio, de um quilo e meio apenas, é muitas vezes autônoma e “manda” na gente. Se virar no meio de 80 bilhões de neurônios que disparam quando bem entendem é nosso grande drama. Não estamos totalmente no controle. Que isso fique bem claro. Apesar das religiões gostarem de julgar a todos nós como se tivéssemos total livre arbítrio, não temos esse controle todo. A massa cinzenta que temos aqui dentro é um caos, se expressa sozinha por inúmeras vezes. Faz coisa por detrás, o misterioso subconsciente, hoje já comprovado pela ciência. Faz o medo ou a raiva despertar em nós sem passar por nossa parte consciente. Aprendemos a brecar melhor ou pior que outros, mas a mecânica que existe em nosso corpo não é a mais ideal para ser um ser perfeito… Por isso, é de se desconfiar que o universo tenha outros objetivos além da perfeição. Talvez seja porque ser doente e problemático como somos, gera belezas maravilhosas no mundo que não existiriam se fôssemos “sãos”. A mesma conclusão de Oliver Sacks para seus pacientes vale como teoria do universo…

Obrigado Oliver Sacks por tantos livros inesquecíveis.

Após devorar todos os livros de Oliver fiquei com mais compaixão pelas pessoas. Não são só os “definitivamente doentes” que são doentes. Todos nós temos problemas sérios em controlar as tempestades elétricas de 80 bilhões de neurônios e suas vontades autônomas totalmente desligadas da nossa mente consciente.

Por Oliver Sacks 

Há um mês, senti que estava com boa saúde, até mesmo uma saúde robusta. Aos 81 anos, ainda podia nadar uma milha por dia. Mas minha sorte mudou. Semanas atrás, descobri que tinha metástase múltipla no fígado. Há nove anos, descobri que tinha um raro tumor no olho, um melanoma ocular. Embora a radioterapia e o laser para remover o tumor tenham me deixado cego desse olho, apenas em casos muito raros esse tipo de tumor pode se tornar metástase. Eu estava entre os 2% sem sorte.

 

Sinto-me agradecido por ter tido nove anos de boa saúde e produtividade desde o diagnóstico original, mas agora eu estou frente a frente com a morte. O câncer ocupou um terço do meu fígado e, apesar de seu avanço ocorrer de maneira lenta, esse tipo particular de câncer não pode ser contido.

 

Cabe a mim, agora, escolher como viver os meses que me restam. Tenho de viver do modo mais rico, profundo e produtivo que puder. Nesse contexto, sou encorajado pelas palavras de um dos meus filósofos favoritos, David Hume, que, depois de descobrir que estava mortalmente doente aos 65 anos, escreveu uma pequena autobiografia em apenas um dia em abril de 1776. Ele a intitulou de “Minha própria vida”.

 

“Eu agora conto com uma dissolução rápida”, escreveu. “Tenho sofrido uma pequena dor da minha desordem; e o que é mais estranho, apesar do grande declínio da minha pessoa, nunca sofri um momento de abatimento do meu espírito. Eu possuo o mesmo ardor de sempre no estudo e a mesma alegria em companhia.”

 

Tive sorte suficiente para viver mais de 80 anos, e os 15 anos que me separam de Hume têm sido igualmente ricos de trabalho e amor. Nesse tempo eu publiquei cinco livros e completei uma autobiografia (algumas páginas a mais que a de Hume) que será publicada nesta primavera. Ainda tenho vários outros livros perto da conclusão.

 

Hume continua. “Eu sou (…) um homem de disposições médias, de temperamento sob controle, de um humor aberto, social e alegre, capaz de me apegar, mas pouco suscetível a inimizades, e de grande moderação em todas as minhas paixões.”

 

Aqui, eu e Hume nos diferenciamos. Enquanto eu curti relações amorosas e amizades e não tenho verdadeiras inimizades, não posso dizer (nem ninguém que me conhece) que sou um homem de disposições moderadas. Ao contrário, sou um homem de disposições veementes, com violento entusiasmo e extrema falta de moderação em todas as minhas paixões. Ainda assim, um trecho do ensaio de Hume me parece extremamente verdadeiro: “É difícil estar mais destacado da vida do que estou no momento”.

 

Nos últimos dias, tenho conseguido ver minha vida de uma grande altitude, como uma espécie de paisagem e com uma profunda ideia de conexão entre todas as partes. Isso não significa que eu desisti da vida.

 

Ao contrário, eu me sinto intensamente vivo e quero – e espero – no tempo que me resta aprofundar minhas amizades, dizer adeus para as pessoas que amo, escrever mais, viajar se tiver forças, atingir novos níveis de entendimento e compreensão.

 

Isso vai envolver audácia, clareza e simplicidade no discurso; tentar acertar minhas contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para alguma diversão (e algumas tolices, também).

 

Sinto uma repentina clareza de foco e perspectiva. Não há tempo para nada que não seja essencial. Tenho de centrar foco em mim mesmo, no meu trabalho e em meus amigos. Não devo mais assistir ao (telejornal) NewsHour todas as noites. Não devo mais prestar atenção à política ou às discussões sobre o aquecimento global.

 

Isso não é indiferença, mas distanciamento – ainda me importo profundamente com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com a crescente desigualdade, mas não são mais problemas meus. Todos eles pertencem ao futuro. Fico feliz quando encontro jovens talentosos – até aquele que fez a biópsia e o diagnóstico da minha metástase. Sinto que o futuro está em boas mãos.

 

***

 

Sinto cada vez mais consciência, nos últimos dez anos ou mais, de mortes entre os meus contemporâneos. A minha geração está partindo, e cada morte que eu tive, senti como um descolamento, a rasgar parte de mim. Não haverá ninguém como nós quando nos formos, mas também não há ninguém como qualquer outra pessoa, nunca. Quando pessoas morrem, elas não podem ser substituídas. Deixam buracos que não podem ser preenchidos, pois é o destino – o genético e neural – de todo ser humano ser um indivíduo único, a encontrar o seu próprio caminho, para viver a sua própria vida, para morrer a sua própria morte.

 

Eu não posso fingir que não tenho medo. Mas o meu sentimento maior é de gratidão. Eu tenho amado e tenho sido amado. Eu tenho recebido muito e dei alguma coisa em troca. Eu li, e viajei, e pensei, e escrevi. Eu tive uma ligação com o mundo, aquela especial, entre escritores e leitores. 

 

Acima de tudo, eu tenho sido um ser sensível, um animal pensante neste belo planeta. O que, por si só, tem sido um enorme privilégio e aventura.

Oliver tinha um jeito antigo de cuidar de seus pacientes, o oposto do médico atual. Ele ia à casa da pessoa, jantava com ela, queria saber como era no dia a dia, o que pensava, o que sentia, como se relacionava com os mais próximos. Não tratava ninguém como genérico e por isso obtinha fatos tão interessantes da vida das pessoas. Ele via a riqueza das pessoas diferentes.

Robin Williams representando Oliver no filme “Tempo de Despertar”

Oliver ajudando Robin durante as filmagens

Seu discurso no TED