Independente de acreditar ou não na existência de um Jesus histórico, que realmente andou por esse mundo, fato é que sua narrativa é incrivelmente interessante e visceral mesmo que seja “só uma história”. Coloco “só uma história” entre aspas porque as pessoas não se dão conta de que vivemos por histórias, do poder físico e transcendente que elas têm em nossas vidas. As que permanecem indeléveis no inconsciente coletivo, como inegavelmente a de Jesus permaneceu, acabam formando um arquétipo, histórias significativas onde o drama humano se expressa e acaba por se retroalimentar. Histórias são psicodélicas, alteram nossa consciência, nos enchem de vírus que podem durar por toda uma vida (Richard Dawkins chamaria de “memes”). Portanto, “só uma história”, é um eufemismo perigoso e muitas vezes tolo. Quantas coisas as pessoas fazem ou deixam de fazer nesse mundo por causa da história de Jesus. Ela alterou nosso destino completamente.
As histórias que nos contamos todos os dias, dentro de nossas cabeças, para nós mesmos, mesmo que subconscientemente, são completamente influenciadas e formatadas por essas grandes histórias que impregnam até mesmo nossos genes. Sejam elas propagadas pelos livros, cinema, televisão, pelas tradições orais, sociedade ou por nossos pais, vivemos por moldes estruturais, roteiros idealísticos, que queremos aplicar em nossa vida, que muitas vezes se travestem indevidamente de “exatamente aquilo que queremos”. Um desses moldes é o mito do herói que impregna tanto sexo masculino, que buscam vencer, conquistar e ser um grande deus aos olhos de sua gente. Para as mulheres o antigo e difícil de se desvencilhar mito da princesa, a mais linda e perfeita, onde um príncipe lindo e perfeito vem salvá-la de sua vida aborrecida. Nossas atitudes, alegrias e tristezas, trazem por trás uma história mestra padrão que está no comando.
Se você apagar da memória do mundo toda a história de Jesus, sua morte e ressurreição, ela aparecerá de alguma outra forma como sempre fez na história da humanidade. Seja pelo mito da Fênix que renasce das cinzas ou de tantos outros deuses que morrem e renascem mais poderosos como Baal, Ishtar, Osíris…
Se me perguntam se tenho ou não fé que tudo isso aconteceu eu respondo que não importa. Uma história boa e bem contada, algo que nos impressiona e nos inspira, que mexe com nossos sentimentos, já é prova material de significância e, portanto, de substância. A existência de uma história combinada ao espectador que a vivifica com sua voluntária credulidade, causa mudança empírica no mundo. Imagine quando milhões o fazem juntos! Boas histórias são como deuses, elas agem sobre nós e vivemos por elas. Não é por acaso que a história de Jesus “pegou”. Precisávamos dela, queríamos ela e ela age sobre nós. Mesmo com o poder das igrejas que manipulam as pessoas sabendo do poder dessa história, não foi por causa dessas instituições que a coisa tocou milhões por tantos séculos. Elas apenas tiram vantagem dessa necessidade básica do ser humano, de viver por uma bela história. Quando a coisa encaixa conosco, dá uma sensação boa de conforto e alívio, já fez sentido, geralmente não queremos “provas” ou “evidências” de que aquilo realmente aconteceu. Existe apenas o fato de que ao crescer intelectualmente, muitas vezes precisamos de histórias mais elaboradas também. E a pergunta mais importante é: essa história me faz bem, me é útil? A beleza da existência de histórias passa pela beleza ainda maior de pode escolher histórias. A não ser que você se hipnotizou com uma história que diz “eu sou a única e real verdade”.
Em Heptarchya Mysthica estudamos que “ficção” é uma impossibilidade fatídica no universo. É uma imposição a imaginação obrigatoriamente ser substância material.Só um Yaksha (um falso limite) pode fazer com que algo possa ser percebido como ficção. Mas isso é muito complicado para detalhar agora, fica para outro artigo.
Contar belas histórias é para a Heptarchya o sentido da existência. Não é a evolução, eliminar nossos defeitos para um dia sermos perfeitos, mas o processo, a história em si. O mundo, como disse Nietszche, se tivesse um objetivo, já deveria tê-lo alcançado. Nosso eu perfeito necessariamente já existe, está apenas voluntariamente esquecido. Se Deus, a perfeição, ou uma sabedoria intrínseca ao universo existe, ela jamais erraria ou precisaria de tempo. Mas, o mundo é apaixonado por histórias. Como disse William Blake: “A Eternidade anda enamorada dos frutos do tempo”!
A história da Páscoa corresponde a um dos nossos mais belos arquétipos. Morte e ressurreição. Simboliza todas as vezes em que passamos por uma terrível provação, um período escuro de trevas, uma via-crúcis, a noite escura da alma… e então conseguimos renascer, atravessar a via dolorosa, deixando pelo caminho tudo que não nos servia mais. O caminho do renascimento sempre é acompanhado de muita dor enquanto não enxergamos o outro lado, estamos morrendo no que éramos ainda sem ver o novo poder adquirido. E por pior que seja, somos apegados ao que nos era familiar, e o salto ao novo pede um momento de cegueira, uma loucura, um risco. Mas quando tudo se assenta, vemos que nos transformamos num corpo muito mais glorioso se comparado ao que éramos antes e entendemos e agradecemos o processo da vida. Quem de nós não lembra dessa história,morte e ressurreição, e a usa como alento para atravessar momentos difíceis? É um arquétipo universal que sempre encaixará em nossas vidas. Essa história já é material, pois nos enche de força para continuar nos dias em que o sofrimento parece estar drenando tudo o que temos e somos. Ou alguém já não chegou e lhe contou a história da borboleta que era lagarta, e só soube que tinha asas quando a crisálida ficou apertada demais e ela teve que fazer uma força imensa para se libertar, força essa que foi essencial para poder depois voar? Pronto, contei de novo… E você vai sempre se recontar essa história.
Sempre celebraremos a Páscoa, porque no fundo no fundo, sabemos que é a celebração das histórias bonitas, que toda essa nossa dor sempre acaba em algo bonito que a justifica… essa é a Páscoa. Se você apenas imaginar um ser longínquo, que morreu há mais de 2 mil anos atrás na cruz e ressuscitou e tal, e não perceber que a história fala de você mesmo, de sua vida, ela ficará pobre e quase inútil. Introjetar a Páscoa e ver que fala da sua pessoa é dar a chance de se livrar de cruzes antigas e poder renascer de novo. A Páscoa é sobre você.
Resumindo e frisando: a Páscoa é uma história que celebra nossas histórias individuais, que nos lembra que tudo aquilo de ruim pelo que passamos serve para a beleza que é superar e renascer das cinzas, uma beleza e uma força primordial que justifica a existência do mundo e da sua vida. Não existe história sem morte e ressurreição! Sem histórias não existe mundo!
A arte justifica o mundo e absolve os homens… histórias, histórias, histórias…
Viva por uma que vale a pena… e conte uma original! Feliz Páscoa (a Páscoa de todos os momentos do ano)
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